quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

A primeira guerra mundial - Margareth Macmillan


Prólogo Guerra ou Paz?


Louvain era uma localidade tranquila, como afirmava um guia de viagem de 1910, mas certo dia foi palco de um incêndio espetacular. Nenhum de seus habitantes poderia esperar que aquilo acontecesse com a bela e civilizada cidade. Próspera e pacífica ao longo de muitos séculos, era conhecida por suas inúmeras e maravilhosas igrejas, casas antigas, um prédio da prefeitura soberbo em estilo gótico e uma famosa universidade fundada em 1425. A biblioteca da universidade, no célebre e velho Cloth Hall, continha 200 mil livros, inclusive muitas obras importantes sobre teologia e clássicas, bem como uma rica coleção de manuscritos que variavam de pequena série de músicas escritas por um  monge no século IX a manuscritos iluminados, sobre os quais os monges haviam trabalhado durante anos. No fim de agosto de 1914, entretanto, o cheiro de fumaça tomou conta da cidade, e as chamas que destruíram Louvain podiam ser vistas a quilômetros de distância. Grande parte da cidade virou ruína, inclusive sua grande biblioteca, enquanto os moradores desesperados, em cenas que se tornariam familiares no mundo do século XX, fugiam para a área rural carregando tudo que podiam de seus pertences.

Como a maior parte da Bélgica, Louvain teve o infortúnio de estar na rota alemã de invasão da França na Grande Guerra que eclodiu no verão de 1914 e se estenderia até 11 de novembro de 1918. Os planos alemães previam uma guerra em duas frentes, com uma ação de conter a Rússia, o inimigo a leste, e uma rápida invasão e derrota da França a oeste. Esperavam que a Bélgica, país neutro, aquiescesse quietamente à travessia de seu território pelas tropas alemãs rumo ao sul. Como tantas vezes aconteceu mais tarde na Grande Guerra, essa suposição se revelou totalmente equivocada. O governo belga decidiu resistir, o que inutilizou de imediato o plano alemão, e os ingleses, após alguma hesitação, entraram na guerra contra a Alemanha. Quando chegaram a Louvain em 19 de agosto, os alemães já estavam rancorosos com o que consideraram uma resistência belga sem sentido, e preocupados em se verem atacados por tropas inglesas e belgas, assim como por civis comuns que poderiam pegar em armas.

Nos primeiros dias tudo correu bem: os alemães se conduziram corretamente, e os cidadãos de Louvain estavam com medo demais para qualquer hostilidade aos invasores. Em 25 de agosto chegaram novas tropas alemãs que recuavam diante de um contra-ataque belga, e correu o boato de que os ingleses estavam vindo. Houve tiros, provavelmente disparados por soldados alemães nervosos e talvez bêbados. O pânico cresceu entre os alemães, convencidos de estarem sob ataque, e as primeiras represálias ocorreram. Naquela noite e nos dias seguintes, civis foram arrancados de suas casas, e alguns, entre eles o prefeito, o reitor da universidade e vários policiais, foram fuzilados sem contemplação. Na conta final, 250 habitantes de uma população de 10 mil foram mortos, e muitos outros espancados e maltratados. Mil e quinhentos moradores de Louvain, de crianças a avós, foram metidos num trem e mandados para a Alemanha, onde multidões os receberam com insultos e sarcasmos.

Os soldados alemães – aos quais frequentemente oficiais se juntaram – saquearam a cidade e deliberadamente incendiaram prédios. Mil e cem das 9 mil casas de Louvain foram destruídas. As chamas tomaram conta de uma igreja do século XV, e seu teto desabou. Por volta da meia-noite de 25 de agosto, soldados alemães entraram na biblioteca e espalharam gasolina. Pela manhã o prédio estava em ruínas, e seus livros não existiam mais, embora as chamas continuassem ardendo por vários dias. Um acadêmico local, padre, conversou com o embaixador americano na Bélgica alguns dias mais tarde. O belga estava calmo e descreveu a destruição na cidade, o fuzilamento de amigos e a cena comovente dos refugiados, mas, quando se referiu à biblioteca, pôs a cabeça entre as mãos e chorou. “O centro da cidade é um monte de escombros fumegantes,” relatou um professor que retornou à cidade. “Silêncio opressivo por toda parte. Todo mundo se escondeu. Vejo rostos amedrontados nas janelas dos porões.”

Isso foi apenas o começo, quando a Europa se deixou arrastar para a Grande Guerra. A catedral de Reims, com setecentos anos de existência, a mais bela e importante catedral francesa, onde a maioria dos reis franceses tinha sido coroada, foi pulverizada pelos canhões alemães logo após o saque a Louvain. A cabeça de uma de suas magníficas esculturas de anjos foi encontrada no chão, com seu belo sorriso beatífico intacto. Ypres, com seu próprio soberbo Cloth Hall, foi reduzida a um monte de pedras, e o coração de Treviso, no norte da Itália, destruído por bombardeios. Muito embora nem toda tenha sido causada pelos alemães, a destruição produziu tremendo impacto na opinião americana e contribuiu para a entrada dos Estados Unidos na guerra em 1917. Como disse pesarosamente um professor alemão no fim da guerra: “Hoje podemos afirmar que três nomes, Louvain, Reims e Lusitania, em igual medida, varreram da América a simpatia pela Alemanha.”

As perdas em Louvain foram na verdade pequenas, considerando o que estava por vir – os mais de 9 milhões de soldados mortos e outros 15 milhões feridos, e a devastação de boa parte do restante da Bélgica, do norte da França, da Sérvia e de partes dos impérios russo e austro-húngaro. De qualquer forma, Louvain transformou-se no símbolo da destruição sem propósito, do dano causado aos europeus por eles mesmos naquela que fora a parte mais próspera e poderosa do mundo, e dos ódios irracionais e incontroláveis entre povos que tanto tinham em comum.

A Grande Guerra começou no lado da Europa oposto a Louvain, em Sarajevo, nos Balcãs, com o assassínio do Arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do trono da Áustria-Hungria. Como os incêndios que devoraram Louvain, esse ato disparou um conflito que se expandiu a toda a Europa e a muitas partes do mundo. As maiores batalhas e perdas foram nas frentes ocidental e oriental, mas também houve combates nos Balcãs, no norte da Itália, no Oriente Médio e no Cáucaso, bem como no Extremo Oriente, no Pacífico e na África. Soldados de todo o mundo derramaram-se na Europa, vindos da Índia, do Canadá, da Nova Zelândia e da Austrália (no Império Britânico) ou da Argélia e da África subsaariana no francês. A China enviou “coolies” para transportar suprimentos e cavar trincheiras para os aliados, enquanto o Japão, também aliado, ajudou a patrulhar as rotas marítimas mundiais. Em 1917 os Estados Unidos, não mais suportando as provocações alemãs, entraram na guerra. Perderam cerca de 114 mil soldados e vieram a concluir que haviam sido levados a se envolver em um grande conflito no qual não tinham qualquer interesse.

A paz, ou algo parecido, foi alcançada em 1918, mas por uma Europa e um mundo muito diferentes. Quatro grandes impérios tinham se desmantelado: a Rússia, que dominara diversos povos, desde os poloneses a oeste aos georgianos no leste; a Alemanha com seus territórios na Polônia e além-mar; a Áustria-Hungria, o grande Império multinacional do centro da Europa; e o Império Otomano, que ainda englobava pedaços de território europeu, além da Turquia de hoje e da maior parte do Oriente Médio árabe. Os bolcheviques tinham assumido o poder na Rússia, sonhando com a criação de um novo mundo comunista e que a revolução desencadeara uma sucessão de outras na Hungria, na Alemanha ou, mais tarde, na China. A velha ordem internacional se fora para sempre. Fraca e empobrecida, a Europa já não era a senhora inquestionável do mundo. Em suas colônias, movimentos nacionalistas se multiplicavam, e novas potências surgiam em sua periferia, a leste no Japão, e a oeste da Europa, nos Estados Unidos. A Grande Guerra não foi o catalizador do aparecimento da superpotência ocidental – isso já estava acontecendo – mas acelerou a chegada do século da América.

Sob diversas formas, a Europa pagou um preço terrível pela sua Grande Guerra: os veteranos que nunca se recuperaram psicológica ou fisicamente; as viúvas e os órfãos; e as moças que jamais teriam um marido, porque tantos homens morreram. Nos primeiros anos de paz, novas aflições caíram sobre a sociedade europeia: a epidemia de gripe (talvez consequência do revolvimento do solo rico em micróbios na Bélgica e no norte da França) que ceifou cerca de 20 milhões de vidas pelo mundo; a fome consequente da inexistência de braços para plantar e de transporte para levar alimentos até os mercados; e a turbulência política, quando extremistas de direita e de esquerda usaram a força para alcançar seus objetivos. Em Viena, outrora uma das cidades mais ricas da Europa, os membros da Cruz Vermelha testemunharam surtos de tifo, cólera, raquitismo e escorbuto – flagelos que, se pensava, tinham desaparecido da Europa. E, afinal, os anos 1920 e 1930 foram apenas uma pausa no que alguns hoje chamam a nova Guerra dos Trinta Anos da Europa. Em 1939, a Grande Guerra adquiriu novo nome, quando estourou a Segunda Guerra Mundial.

A Grande Guerra ainda lança sua sombra, fisicamente e em nossa
imaginação. Toneladas de material bélico permanecem enterradas nos campos de batalha, e não raramente alguém – um infeliz agricultor plantando na Bélgica, talvez – entra na lista de baixas. Todas as primaveras, depois que o solo descongela, unidades dos exércitos francês e belga têm de recolher granadas não explodidas que afloraram. Também em nossas lembranças, a Grande Guerra, devido, em parte, ao extraordinário afluxo de memórias, livros e pinturas, mas também em razão de tantos de nós termos conexões familiares com o conflito, permanece aquele capítulo sombrio e terrível de nossa história. Meus dois avôs lutaram na guerra; um no Oriente Médio com o exército indiano, e o outro como médico canadense num hospital de campanha no Front Ocidental. Minha família conserva as medalhas de ambos, uma espada presenteada por um paciente em Bagdad e uma granada de mão com que brincávamos em criança no Canadá, até alguém achar que provavelmente não estava desativada. 

Também recordamos a Grande Guerra por ser um enorme quebra-cabeça. Como conseguiu a Europa impor tal castigo a si mesma e ao mundo? Há muitas explicações possíveis; na verdade, tantas que é difícil escolher entre elas. Para começar, a corrida armamentista, rígidos planos militares, rivalidade econômica, guerras comerciais, o imperialismo com sua busca de colônias ou os sistemas de alianças dividindo a Europa em campos antagônicos. Ideias e emoções muitas vezes cruzaram fronteiras nacionais: o nacionalismo, com seus repulsivos cavaleiros do ódio e desprezo pelos outros; medos de perdas ou revoluções, de terroristas e anarquistas; esperanças de mudança e de um mundo melhor; exigências de honra e virilidade mandando não recuar ou parecer fraco; ou Darwinismo Social, que classificava sociedades como se fossem espécies e promovia uma crença não só na evolução e no progresso, mas também na inevitabilidade da luta. E que dizer do papel próprio de cada nação e de seus motivos? Das ambições das ascendentes como a Alemanha e o Japão; dos temores das declinantes como a Inglaterra; da vingança, no caso da França e da Rússia; ou da luta pela sobrevivência da Áustria-Hungria? No cerne de cada nação, ainda as pressões internas: um novel movimento trabalhista, por exemplo, ou forças abertamente revolucionárias; exigências de voto para as mulheres ou de independência de nações submetidas; ou conflitos entre as classes, entre os crentes e os anticlericais, ou entre militares e civis. Como cada um desses vetores atuou no sentido de preservar a longa paz da Europa ou de movê-la rumo à guerra?

Movimentos, ideias, preconceitos, instituições, conflitos são todos, sem dúvida, importantes. Todavia, ainda restam os indivíduos, no fim não muitos, que tiveram de dizer “sim,” “em frente” e irromper a guerra, ou “não” e detê-la. Alguns eram monarcas hereditários com grande poder – o Kaiser da Alemanha, o Czar da Rússia e o Imperador da Áustria-Hungria; outros – o presidente da França, os
primeiros-ministros da Inglaterra e da Itália – engastados em regimes constitucionais. Foi, em retrospecto, a tragédia da Europa e do mundo o fato de nenhum dos personagens-chave em 1914 ser um grande e criativo líder com coragem para enfrentar as pressões que conduziam ao conflito. De certa forma, qualquer explicação de como eclodiu a Grande Guerra deve balancear as grandes correntezas do passado com o papel dos seres humanos levados por ela, mas que às vezes mudaram seu curso.

É fácil erguer mãos para o céu e dizer que a Grande Guerra foi inevitável, mas trata-se de ideia perigosa, especialmente em tempo como o nosso, que em alguns aspectos, não em todos, parece aquele mundo sumido dos anos anteriores a 1914. Nosso mundo enfrenta desafios semelhantes, alguns de ordem revolucionária e ideológica, como o crescimento de religiões militantes e movimentos sociais de protesto; outros advêm da tensão de nações em crescimento ou em declínio, como a China e os Estados Unidos. Precisamos considerar seriamente como nascem as guerras e como podemos preservar a paz. Nações se confrontam, como fizeram antes de 1914, no que seus líderes imaginavam ser um jogo de blefes e contrablefes que julgavam manter sob controle. Apesar disso, subitamente a Europa passou da paz para a guerra, apenas nas cinco semanas que se seguiram ao assassinato do Arquiduque. Em crises anteriores, tão graves como a de 1914, a Europa não ultrapassou os limites. Seus líderes – e grande parcela de seus povos os apoiou – preferiram resolver as questões e preservar a paz. O que aconteceu de forma diferente em 1914?

Comecemos imaginando uma paisagem com gente a caminhar. O solo, a vegetação, os morros, os riachos todos são componentes importantes da Europa, desde a economia à estrutura social; enquanto as brisas são as correntes de pensamento que modelavam opiniões e pontos de vista europeus. Suponha que você é um dos caminhantes. Terá opções diante de si. O tempo está bom, embora possa notar algumas nuvens escuras no céu. O caminho à sua frente é fácil pelo terreno plano. Você sabe que deve continuar caminhando porque o exercício faz bem e, afinal, você quer chegar a um destino em segurança. Também sabe que, à medida que avança, deve tomar certo cuidado. Pode ser que apareçam animais inamistosos, que haja cursos de água a atravessar e alguma encosta íngreme. Mesmo assim, não passa por sua cabeça esbarrar num deles de maneira fatal. Você é um andarilho experiente e muito sensato.

Em 1914, no entanto, a Europa desabou do penhasco e mergulhou em um conflito catastrófico que iria matar milhões de seus homens, exaurir suas economias, abalar e rebentar impérios e sociedades e solapar definitivamente o domínio europeu do mundo. As fotografias de multidões aplaudindo nas grandes capitais são enganosas. A eclosão da guerra pegou de surpresa a maioria dos europeus, e sua reação inicial foi de espanto e choque. Tinham nascido e vivido acostumados à paz. O século desde o fim das guerras napoleônicas fora o mais pacífico na Europa desde o Império Romano. É verdade que guerras houvera, porém de natureza colonial distante, como a dos zulus na África meridional, ou na periferia europeia, como a Guerra da Crimeia, ou ainda, curtas e decisivas, como a Guerra Franco-Prussiana.

O solavanco final rumo à guerra só precisou de pouco mais de um mês, entre o assassínio do arquiduque austríaco em Sarajevo, em 28 de junho, e a eclosão de uma guerra geral europeia em 4 de agosto. No fim, as decisões cruciais daquelas semanas que levaram a Europa à guerra foram tomadas por um grupo surpreendentemente pequeno de homens (e eram todos homens). Para entender como agiram, porém, devemos ir mais para trás e examinar as forças que os moldaram. Precisamos compreender as sociedades e instituições das quais foram o produto. Devemos tentar entender os valores e as ideias, as emoções e os preconceitos que os enformaram quando olharam o mundo. Também devemos nos lembrar de que, com uma ou duas exceções, mal faziam ideia de aonde estavam levando seus países e o mundo. Nesse aspecto, estavam muito bem sintonizados com o tempo em que viviam. Para a maioria dos europeus, uma guerra geral era algo impossível, improvável ou fadada a terminar rapidamente.

Ao tentarmos entender o sentido dos eventos do verão de 1914, devemos nos situar no lugar daqueles que viveram um século atrás, antes de nos apressarmos a distribuir culpas. Não podemos perguntar aos que decidiram o que tinham em mente quando deram os passos rumo à destruição, mas podemos fazer uma ideia bastante razoável consultando os arquivos da época e as memórias escritas posteriormente. Algo que convém ficar bem claro é que os responsáveis pelas escolhas sem dúvida pensaram muito nas crises anteriores e nos momentos que as precederam, quando decisões foram tomadas ou evitadas.

Os líderes russos, por exemplo, jamais haviam esquecido ou perdoado a anexação da Bósnia e Herzegovina pelo Império Austro-Húngaro em 1908. Além disso, a Rússia falhara ao não apoiar sua protegée, a Sérvia, quando este país confrontou os austro-húngaros, e novamente nas Guerras Balcânicas em 1912-13. Agora, a Áustria-Hungria ameaçava destruir a Sérvia. O que significaria para a Rússia e seu prestígio ficar assistindo mais uma vez sem nada fazer? Pois a Alemanha não apoiara firmemente seus aliados austro-húngaros em confrontos anteriores? Se nada fizesse dessa vez, não perderia seu único e indiscutível aliado? O fato de graves crises anteriores entre potências envolvendo colônias ou os Balcãs terem sido solucionadas pacificamente acrescentou outro fator às estimativas de 1914. A ameaça de guerra já fora utilizada, mas, no fim, houve pressões exercidas por terceiros, fizeram-se concessões, conferências foram convocadas com sucesso para resolver questões de grande perigo. Andar pelo fio da navalha dera resultado. O mesmo processo certamente começaria a dar certo em 1914. Só que dessa vez o equilibrismo à beira do precipício não funcionou. O Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia, com apoio da Alemanha. A Rússia decidiu apoiar a Sérvia e entrou em guerra contra a a Alemanha e a Áustria-Hungria. A Alemanha atacou a França, aliada da Rússia, e a Inglaterra veio em socorro de seus aliados. E assim passaram a barreira.

A eclosão da guerra em 1914 não aconteceu sob céu azul. Nuvens
acumularam-se ao longo das duas décadas anteriores, e muitos europeus viam ofato com desconforto. Imagens da iminência de tormentas, de barragens prontas para rebentar e de avalanches a ponto de deslizar eram usuais na literatura da época. Por outro lado, muitos líderes, tanto quanto cidadãos comuns, acreditavam ser capazes de afastar o risco de conflitos e criar instituições internacionais mais fortes e melhores para resolver pacificamente divergências e tornar obsoleto o instrumento da guerra. Talvez os derradeiros anos de ouro da Europa pré-guerra sejam imaginação de gerações posteriores, mas, mesmo na época, a literatura continha imagens de raios de sol mundo afora e da humanidade marchando para um futuro mais próspero e feliz.

Mui pouca coisa é inevitável na história. A Europa não precisava ir à guerra em 1914; uma guerra geral poderia ter sido evitada até o último instante, em 4 de agosto, quando finalmente a Inglaterra decidiu tomar parte. Olhando de hoje, claro que podemos identificar as forças que tornavam a guerra mais provável: as
rivalidades por colônias, a competição econômica, os nacionalismos étnicos que iam esfacelando os decadentes impérios Otomano e Austro-Húngaro e o crescimento de uma opinião pública nacionalista a exercer novas pressões sobre os líderes em prol de supostos direitos e interesses de suas nações.

Podem-se ver, como perceberam os europeus naqueles dias, as tensões na ordem internacional. A questão germânica, por exemplo. A criação da Alemanha, em 1871, de repente apresentou à Europa uma nova grande potência no centro do continente. Seria a Alemanha o fulcro em torno do qual o resto da Europa evoluiria ou a ameaça contra a qual se uniria? Como as potências de fora da Europa – Japão e Estados Unidos em ascensão – se encaixariam num mundo dominado pela Europa? O darwinismo social, filho bastardo do pensamento evolucionista e primo do militarismo, alimentou a crença em uma competição entre as nações como parte das leis da natureza, segundo as quais, no fim, sobreviveriam as mais aptas. E provavelmente por meio de guerras. A admiração pelos militares criada no século XIX, reconhecendo-os como a parte mais nobre da nação, e a disseminação de valores militares pelas sociedades civis incentivaram a crença de que a guerra era etapa necessária na grande luta pela sobrevivência e que, na verdade, devia ser salutar para as sociedades afinando-as, por assim dizer.

A ciência e a tecnologia, que trouxeram tantos benefícios para a humanidade no século XIX, produziram também armas novas e mais terríveis. Rivalidades entre nações estimularam uma corrida armamentista que, por sua vez, aprofundou percepções de insegurança e aumentou o ímpeto dessa corrida. Nações buscavam aliados para compensar suas fraquezas, e suas decisões ajudaram a levar a Europa para perto da guerra. A França, que perdia a corrida demográfica para a Alemanha, fez aliança com a Rússia, em parte para contar com seu gigantesco potencial humano. Em troca, a Rússia conseguiu tecnologia e capital franceses. A aliança franco-russa, porém, fez a Alemanha se sentir cercada. Aproximou-se do Império Austro-Húngaro e, ao fazê-lo, encampou sua rivalidade com a Rússia nos Balcãs. O fortalecimento naval pretendido pela Alemanha como forma de obrigar a Inglaterra a manter uma posição amistosa convenceu esta não apenas de que era necessário superar a Alemanha em força naval, mas também a abandonar sua preferida indiferença em relação à Europa e se aproximar da França e da Rússia.

Os planos militares que vieram com a corrida armamentista e as alianças são por vezes apontados como responsáveis pela máquina do Juízo Final que, uma vez ligada, não pôde parar. No século XIX, toda potência europeia, exceto a Inglaterra, tinha um exército de conscritos, com pequena parte de seus homens em uniforme e um número muito maior como reserva. Em ameaça de guerra, grandes exércitos se formavam em poucos dias. A mobilização em massa seguia um plano detalhado, para cada homem chegar à unidade certa, e as unidades eram postas na configuração correta por ferrovia. Os horários eram peças de arte, mas muito inflexíveis, não permitindo, como na Alemanha em 1914, mobilização parcial em uma só frente – e assim foi que a Alemanha entrou em guerra contra Rússia e França, em vez de somente contra a Rússia. Havia, ademais, perigo em não mobilizar suficientemente cedo. Se o inimigo já estivesse em suas fronteiras, enquanto seus homens ainda tratavam de chegar às respectivas unidades pelas ferrovias, corria-se o risco de já ter perdido a guerra. Quadros de movimento e planejamentos rígidos ameaçavam tirar dos líderes civis as decisões finais.

Os planos estão numa ponta do espectro da explicação pela Grande Guerra; na outra ponta estão considerações nebulosas mas impositivas de honra e prestígio. Wilhelm II da Alemanha se espelhava em seu famoso ancestral Friedrich, o Grande, mas mesmo assim foi sarcasticamente chamado de Guillaume le Timide, por haver recuado na segunda das duas crises do Marrocos. Gostaria ele de passar outra vez por isso? O que valia para indivíduos era também o caso para nações. Depois da humilhação da derrota para o Japão em 1904-5, a Rússia tinha necessidade premente de se reafirmar como grande potência. 

O medo teve papel relevante nas posições adotadas pelas nações em relação às outras e na aceitação por seus líderes e suas políticas da guerra como instrumento de política. A Áustria-Hungria temia desaparecer como potência, a menos que tomasse alguma medida a respeito do nacionalismo sul-eslavo dentro de suas fronteiras, e isso exigia fazer algo a propósito da atração de uma Sérvia sul-eslava e independente. A França temia sua vizinha Alemanha, mais forte econômica e militarmente. Os alemães encaravam apreensivos o leste. A Rússia desenvolvia-se rapidamente e se rearmava. Se a Alemanha não lutasse logo com a Rússia, podia nunca mais ser capaz de fazê-lo. A Inglaterra tinha muito a ganhar com a continuação da paz, mas temia, como sempre temera, que uma única potência dominasse o Continente. Cada potência temia outras, mas temia também seu próprio povo. Ideias socialistas tinham se disseminado pela Europa, e partidos e sindicatos socialistas ameaçavam o poder das velhas classes governantes. Seria o prenúncio de uma revolução violenta, como achavam muitos? O nacionalismo étnico, da mesma forma, era uma força desagregadora na Áustria-Hungria, mas também na Rússia e na Inglaterra, onde a questão irlandesa, nos primeiros meses de 1914, foi, para o governo, uma preocupação maior do que as relações exteriores. Poderia a guerra ser uma ponte para as divisões internas, unindo o público em uma grande onda patriótica?

Finalmente, e isso também é verdadeiro em nossos dias atuais, nunca devemos subestimar o papel cumprido nos assuntos humanos por erros, trapalhadas ou simplesmente inoportunidades. A natureza complexa e ineficiente dos governos russo e alemão significa que os líderes civis não eram totalmente informados sobre planos militares, mesmo quando tinham implicações políticas. Franz Ferdinand, o arquiduque austríaco assassinado em Sarajevo, havia muito se opunha aos que queriam guerra para resolver problemas austro-húngaros. Ironicamente, sua morte tirou de cena o único que podia ser capaz de impedir seu país de declarar guerra à Sérvia desencadeando a reação em cadeia. O assassinato ocorreu no começo das férias de verão. No agravamento da crise, muitos diplomatas, estadistas e chefes militares tinham deixado suas capitais. O ministro do Exterior inglês, Sir Edward Grey, estava observando pássaros. O presidente e o primeiro-ministro franceses viajavam nas duas últimas semanas de julho pela Rússia e pelo Báltico, frequentemente sem contato com Paris.

Ainda assim, existe o perigo de, ao nos concentrarmos nos fatores que pressionavam em direção à guerra, desconsiderar os que ao contrário, tinham o fito da paz. O século XIX assistiu à proliferação de sociedades e associações que pugnavam por banir as guerras e incentivar alternativas como a arbitragem para solucionar disputas entre nações. Homens ricos como Andrew Carnegie e Alfred Nobel doaram fortunas à promoção do entendimento internacional. Os movimentos trabalhistas e os partidos socialistas do mundo se organizaram na Segunda Internacional, que repetidamente apresentava moções contra a guerra e ameaçava convocar uma greve geral em caso de guerra.

O século XIX foi um tempo extraordinário de progresso na ciência, na indústria e na educação, em grande parte centrado numa Europa cada vez mais próspera e poderosa. Seus povos ligavam-se entre si e com o mundo por comunicações, comércio, investimentos, migração cada vez mais rápidos e pela expansão de impérios oficiais e não oficiais. A globalização mundial de antes de 1914 só se compara à que acontece em nossos dias desde o fim da Guerra Fria. Com certeza, e isso era amplamente admitido, esse novo mundo de interdependência seria capaz de criar novas instituições internacionais e induzir a aceitação de novos padrões universais para comportamento das nações. Relações internacionais já não eram vistas, como no século XVIII, na forma de um jogo em que, se alguém ganhava, alguém tinha de perder. Ao contrário, todos poderiam ganhar, mantida a paz. O uso crescente da arbitragem para resolver disputas entre nações, as frequentes ocasiões em que as grandes potências europeias trabalharam juntas para tratar, por exemplo, de crises envolvendo o decadente Império Otomano, e a criação de uma corte internacional de arbitragem – tudo parecia mostrar que, passo a passo, estavam sendo lançadas as
fundações de um modo novo e mais eficiente de conduta dos assuntos internacionais. Guerra, esperava-se, tornar-se-ia coisa obsoleta. Guerra era uma forma ineficaz de resolver disputas. Além do mais, ia se tornando caríssima, tanto em termos de desperdício de recursos dos combatentes quanto na escala dos danos causados por novas armas e tecnologias. Banqueiros alertavam que, mesmo que começasse uma guerra geral, ela teria de ser suspensa em poucas semanas simplesmente porque não haveria como financiá-la.

Grande parte da copiosa literatura sobre os eventos de 1914 compreensivelmente indaga: por que aconteceu a Grande Guerra? Talvez devamos fazer outro tipo de pergunta: por que a longa paz não continuou? Por que os vetores a favor da paz – e eram fortes – não prevaleceram? Afinal, já tinham valido no passado. Por que dessa vez o sistema falhou? Uma forma de obter resposta é ver como as opções da Europa se reduziram nas décadas que antecederam 1914.

Voltemos a imaginar os caminhantes. Começam, como a Europa, numa planície lisa e ensolarada, mas chegam a encruzilhadas onde têm de optar por um caminho ou outro. Embora na época não percebessem as implicações, veem-se percorrendo um vale que vai se estreitando e pode não levar aonde desejam chegar. Podia ser possível tentar encontrar um caminho melhor, mas exigiria esforço considerável – e não está claro o que existe do outro lado dos morros que cercam o vale. Também é possível retroceder, mas isso pode ser muito oneroso, além de levar tempo e talvez causar humilhação. Por exemplo, poderia o governo alemão admitir a si mesmo e ao povo da Alemanha que sua corrida naval com a Inglaterra era não apenas sem sentido, mas também um colossal desperdício de dinheiro?

Este livro traça o caminho percorrido pela Europa até 1914 e ressalta os pontos de inflexão em que suas opções se estreitaram. A decisão francesa de buscar uma aliança com a Rússia para contrabalançar a Alemanha é um deles. A decisão alemã de iniciar uma corrida pelo poder naval com a Inglaterra na década de 1890 é outra. Cautelosamente, a Inglaterra acertou os problemas com a França e, no momento oportuno, com a Rússia. Mas outro momento-chave chegou em 1905-6, quando a Alemanha tentou romper a nova Entente Cordiale na primeira crise sobre o Marrocos. A tentativa resultou num tiro pela culatra, e os dois novos amigos ficaram ainda mais ligados e começaram a ter conversações militares secretas que acrescentaram outro fio aos laços entre a França e a Inglaterra. As graves crises que se seguiram na Europa – a crise da da Bósnia em 1908, a segunda crise do Marrocos em 1911 e as Guerras Balcânicas de 1912 e 1913 – agravaram ressentimentos, suspeitas e lembranças que moldaram as relações entre as grandes potências. Esse é o contexto em que decisões foram tomadas em 1914. 

É possível romper com o passado e começar de novo. Nixon e Mao, afinal, chegaram à conclusão, no começo dos anos 1970, de que ambos os países se beneficiariam com o fim de cerca de vinte anos de hostilidade. Amizades podem mudar, e alianças se quebram – a Itália o fez no começo da Grande Guerra, quando se recusou a lutar ao lado de seus parceiros da Tríplice Aliança, a Áustria Hungria e a Alemanha – mas, com o passar dos anos e com o aumento das obrigações mútuas e das ligações pessoais, isso se torna mais difícil. Um dos argumentos convincentes dos que apoiaram a intervenção inglesa em 1914 foi o fato de a Inglaterra ter induzido a França a contar com sua ajuda, e de que seria desonroso não cumprir o prometido. Entretanto houve tentativas, algumas já em 1913, de potências trocarem seus compromissos nos dois sistemas de aliança. A Alemanha e a Rússia de vez em quando conversaram sobre suas divergências, tal como fizeram Inglaterra e Alemanha, Rússia e Áustria-Hungria, ou França e Alemanha. Seja por inércia, por lembranças de choques no passado ou por medo de traições, sejam quais forem os motivos, as tentativas deram em nada.

Ainda assim, no fim chegamos a alguns generais, a cabeças coroadas, diplomatas e políticos que, no verão de 1914, tinham o poder e a autoridade para dizer “sim” ou “não.” Sim ou não à mobilização dos exércitos, sim ou não ao meio-termo, sim ou não a executar os planos elaborados por seus militares. O contexto é crucial para entender por que eram como foram e agiram como agiram. Não podemos, porém, esquecer as personalidades individuais. O Chanceler alemão, Theobald von Bethmann-Hollweg, acabara de perder sua adorada esposa. Terá isso alimentado o fatalismo com que contemplou a eclosão da guerra? Nicholas II da Rússia tinha um caráter fundamentalmente fraco. Por certo isso lhe tornou mais difícil resistir aos generais que queriam a imediata mobilização russa. Franz Conrad von Hötzendorf, Chefe do Estado-Maior dos exércitos austro-húngaros, queria a glória para seu país, mas também a dele próprio, para que pudesse casar com uma mulher divorciada.

Quando finalmente estourou, a guerra foi tão terrível que logo começou uma busca de culpados que se prolonga até hoje. Por meio de propaganda e criteriosa publicação de documentos, cada país beligerante proclamou a própria inocência e apontou o dedo para os outros. A esquerda acusou o capitalismo, os fabricantes e vendedores de armas, os “mercadores da morte.” A direita acusou a esquerda ou os judeus ou ambos. Na Conferência de Paz em Paris, em 1919, os vencedores falaram em levar os culpados – o Kaiser, alguns de seus generais e diplomatas – a julgamento, mas no fim nada aconteceu. A questão da responsabilidade continuou relevante porque, se a Alemanha fosse responsável, seria justo pagar reparações. Se não fosse responsável, e essa era a opinião geral na Alemanha e cada vez mais no mundo de língua inglesa, as indenizações e outras penalidades impostas à Alemanha eram profundamente injustas e ilegítimas. Nos anos entre as guerras, a opinião predominante foi a de que, como disse David Lloy d George: “As nações escorregaram pela borda para dentro do caldeirão fervente da guerra sem nenhum vestígio de apreensão ou temor.” A Grande Guerra não foi culpa de ninguém ou foi culpa de todos.

Após a Segunda Guerra Mundial, vários historiadores alemães corajosos, liderados por Fritz Fischer, deram mais uma olhada nos arquivos para sustentar que a Alemanha realmente foi culpada e que houve uma sinistra continuidade entre as intenções do último governo de antes da Grande Guerra e Hitler. Também foram contestados, e o debate continua.

A busca provavelmente nunca terminará, e eu própria argumentarei que algumas potências e seus líderes foram mais culpados que outros. A insana determinação austro-húngara de destruir a Sérvia em 1914, a decisão alemã de apoiá-la incondicionalmente, a impaciência russa na mobilização, tudo isso me parece corresponder a maior responsabilidade pela eclosão da guerra. Nem a França nem a Inglaterra queriam guerra, embora se possa alegar que podiam ter se esforçado mais para evitá-la. No fim, porém, creio que a questão mais interessante é saber como a Europa chegou ao ponto, no verão de 1914, em que a guerra ficou mais provável do que a paz. O que os líderes que tomavam as decisões pensaram estar fazendo? Por que naquele momento não recuaram, como já tinham feito antes? Em outras palavras, por que falhou a paz?

A Primeira Guerra Mundial... que acabaria com as guerras / Margaret MacMillan; tradução Gleuber Vieira - 1ª ed. - São Paulo : Globo Livros, 2014. 728 p. ; 23 cm

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