terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Ponte Brasil-Guiana Francesa: os paradoxos da integração em um contexto multi-escalar

MARIA LUIZA DE CASTRO | luiza@pattrol.com.br Arquiteta. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido. UFPA / Núcleo de Altos Estudos Amazônicos. Professora da Universidade Federal do Amapá.

JADSON PORTO Geógrafo. Doutor em Economia aplicada pela UNICAMP. Professor da Universidade Federal do Amapá.

Resumo
As questões envolvidas na construção da ponte entre o Amapá e a Guiana Francesa abrangem diversas escalas nas quais se confrontam tendências muitas vezes opostas, gerando confl itos entre o virtual e o concreto, o local e o global, o tempo e o espaço. A ponte terá profundas implicações para a reprodução das relações sociais e para a reorganização do espaço, e faz-se imprescindível que a sua construção seja acompanhada de políticas organizadoras que conduzam à integração e não a rupturas. Palavras-chave integração, fronteira, ponte bi-nacional, porto de Santana, desenvolvimento.

Resumen
Las cuestiones relacionadas con la construcción del puente entre Amapá (Brasil) y Guiana Francesa abarcan diversas escalas, en las cuales se confrontan tendencias muchas veces opuestas, generando así confl ictos entre lo virtual y lo concreto, lo local y lo global, el tiempo y el espacio. El puente va a tener profundas implicaciones para la reproducción de las relaciones sociales y para la reorganización del espacio y se hace imprescindible que su construcción sea acompañada de políticas organizadoras que conduzcan a la integración y no a rupturas. Palabras Clave integración, frontera, puente binacional, puerto de Santana, desarrollo.

Introdução
Dentro dos esforços de integração da Pan-Amazônia inserem-se as obras de dotação de infra-estrutura viária, com destaque para a construção da ponte que ligará o Brasil à Guiana Francesa.
A complexidade do contexto no qual as novas conexões vão se estabelecer inclui pelo menos três escalas de compreensão, envolvendo diferentes interesses e atores que interagem entre si em um nível multi-escalar, com grande potencial de confl itos. Inicialmente, destaca-se uma macro-escala, dentro da qual a ponte constitui parte do processo de integração da América Latina, com vistas a fortalecer o bloco e lhe conferir peso político e econômico. Em uma escala intermediária, surgem questões que dizem respeito à integração da Amazônia e a sua articulação interna: nela se desenrola a tentativa de priorização das necessidades específicas da região para a construção de um desenvolvimento endógeno. Na micro-escala, insinuam-se novas dinâmicas, passíveis de análise através da percepção de fenômenos que já começam a ocorrer nas proximidades das fronteiras — principalmente nas comunidades de Saint-Georges de l’Oyapock, na Guiana e Oiapoque, no Brasil — mas também em todo um perímetro de influência que inclui Caiena e Macapá.
No nível de interação global, a Guiana é vista como um elo de integração para o Brasil, como locus da interseção de diversos espaços geopolíticos: o espaço dos departamentos franceses da América, o do Caribe, o da América do Sul, o espaço nacional francês e o europeu. Desta forma, a construção da ponte poderá proporcionar ao Brasil uma nova ordem de contatos, através dos vínculos políticos e culturais de que a Guiana desfruta.
Entretanto, do ponto de vista geofísico, é o Amapá que deverá se tornar um importante elo de conexão para a Guiana: o plateau das Guianas encontra-se isolado fisicamente do resto da América do Sul, dentro do que as próprias autoridades francesas designam como um enclave. As duas únicas rodovias existentes levam, de um lado, ao rio Mahony, através do qual se chega ao Suriname por balsa, e, de outro, ao rio Oiapoque, na divisa com o Brasil. Os rios na Guiana Francesa não são navegáveis, porque são muito cheios de cachoeiras e corredeiras; e toda a costa se encontra sob a influência de um regime fluvial-marítimo severo que assoreia portos, cria bancos de areia e áreas de erosão, em permanência. Desta forma, a conexão com o Brasil representa não só a possibilidade de contato com a região Amazônica e com toda a economia mais desenvolvida do sul do continente, mas também uma abertura para o restante do mundo.
Apesar do Amapá se encontrar em situação de relativo isolamento dentro do Brasil, não sendo conectado com outras unidades da federação por rodovias, a dinâmica fluvial local, com destaque para o porto de Santana, abre perspectivas de integração não só na esfera regional, mas mesmo em uma maior amplitude. Capaz de receber embarcações de grande calado, o porto de Santana articula uma rede de transportes e comunicação, por meio de vias fluviais ou de conexão com a malha rodoviária, a partir de Belém, oferecendo ainda à Guiana novas opções de abastecimento interno ou escoamento de mercadorias por via marítima.
No âmbito de interação local, as implicações da ponte são de uma outra ordem: a Guiana Francesa aparece como destino de vários clandestinos brasileiros, e a possibilidade de intensificação destes fluxos ilegais preocupa as autoridades. Este departamento ultramarino francês oferece as vantagens e a estabilidade adquiridas não só através de um sistema avançado de assistência social, mas também da associação a uma França com sólidas bases econômicas e a uma Europa com moeda forte: os benefícios sociais resultantes atraem milhares de jovens brasileiros com a esperança de um futuro melhor. Os comerciantes brasileiros da área de fronteira também se regozijam, vislumbrando a possibilidade do aumento do comércio com o vizinho, a preços vantajosos e recebimento em Euros.
Todas as mudanças geradas pela construção da ponte com certeza vão dinamizar a região, criando novas articulações, mas também acarretando problemas de urbanização nas cidades de fronteira e problemas sociais em toda a área de influência.
Do ponto de vista regional, a melhoria dos meios de transporte poderá servir ao desenvolvimento endógeno, mas ao mesmo tempo ela estará inserida nas dinâmicas globais e se prestará ao eventual escoamento dos produtos de exploração da grande base natural da região, com impactos ambientais negativos. Assim, torna-se imperativo desenvolver políticas públicas preventivas na região, para mitigar estes problemas, avaliando-se os impactos nas diversas escalas e criando estratégias que conduzam ao desenvolvimento sustentável.

1. Amapá: Trajetória de Suporte ao Grande Capital
O estado do Amapá foi criado pela Constituição de 1988. Embora seu contexto econômico, político e social se enquadre no panorama geral dos estados da Região Norte, ele apresenta características peculiares que o singularizam.
A colonização inicial foi precária e marcada, ao longo da história, por dificuldades de povoamento, devido ao clima e à insalubridade da região e por lutas de defesa de terras, principalmente com franceses e espanhóis. Durante todo o período colonial e do império, a política desenvolvida pelos colonizadores visou à ocupação, defesa e exploração das terras. Este período inicial não gerou atividades econômicas capazes de fixar população (PORTO, 2003). Foi só a partir do final do século XIX que as atividades de extrativismo e pecuária permitiram o desenvolvimento de lideranças regionais mais fortes.
No século XX, a partir da criação dos territórios federais na década de 40, a ação do governo federal passou a ter grande influência na estruturação econômica amapaense e em sua organização espacial, transformando as relações de poder dentro do território, por meio de diretrizes políticas e administrativas, implantação de infra-estruturas e estímulo a atividades econômicas, principalmente no setor do extrativismo mineral. Neste setor, cabe destaque para a descoberta do manganês e sua exploração pela ICOMI, a partir da década de 50. Verificou-se, assim, uma transferência gradativa das decisões políticas que estavam em mãos das elites tradicionais locais “para industriais extra-regionais (...) bem como o fortalecimento da emergente classe comercial” (PORTO, 2003, p. 89). As políticas públicas dos anos que se sucederam também foram desenhadas para apoiar grandes projetos, através da dotação de infra-estrutura e do direcionamento governamental para a Amazônia, por meio de iniciativas tais como a Operação Amazônia (1965/67) ou o Programa Polamazônia (1974). Verificou-se, nesta época, um processo de integração da Amazônia à economia internacional como supridora do mercado com matéria-prima essencial por longo prazo, o que levou, entretanto, a uma redução do poder de barganha dos produtores pela saturação do mercado. Assistiu-se então ao esgotamento da política de desenvolvimento para a Amazônia e a um profundo “descompasso entre o ritmo dos processos naturais, sociais e econômicos” (BRITO, 2000, p. 197).
A centralização autoritária do governo chegou ao fim com a Constituição de 1988, “alterando as relações entre os estados e União e entre diversos grupos da sociedade” (MONTEIRO, 2005, p.195). A criação do estado, em 1988, bem como a criação da Área de Livre Comércio, em 1991, transformaram o Amapá em um novo pólo de migração da Amazônia (ARMELIM, 2001), inserido dentro da influência da corrente econômica neoliberal que definia, nesta época, as funções da intervenção estatal. Esta década foi marcada pela substituição das principais empresas atuantes na exploração natural dos solos amapaenses. Uma legislação ambiental mais rigorosa também teve impacto sobre as atividades de mineração e certamente influenciou a ICOMI a encerrar suas atividades em 1997 (MONTEIRO, 2005).
Entretanto, apesar de toda esta trajetória voltada para o crescimento em detrimento do desenvolvimento efetivo, o Amapá se encontra em uma situação ímpar: a população local, mesmo recebendo um considerável número de imigrantes de outras áreas, ainda é pequena e pouco representativa estatisticamente. Por outro lado, o zoneamento Ecológico Econômico de 1998 do Amapá aponta que apenas 1,9% de seu território sofreram alterações devido à antropização  (ARMELIM, 2001).
Desta forma, o caráter das atividades econômicas ainda pode ser redefinido. Se é bem verdade que aparecem hoje sintomas de um conflito entre as diretrizes de uma produção que evoluiu ao ponto de se opor ao seu componente social, assiste-se, por outro lado, à procura de novos caminhos que permitam associar as atividades econômicas ao desenvolvimento regional e endógeno.
O Amapá ainda é bastante isolado do restante do país e não tem ligação rodoviária com nenhum outro estado — embora seja bem articulado com a região amazônica através da navegação fluvial. O relativo isolamento em que se encontra prejudica a sua integração aos mercados nacionais e internacionais, mas ao mesmo tempo fortalece determinadas dinâmicas regionais e locais, protegendo-as da competição desigual a que estariam sujeitas, se conectadas às eficientes redes que atuam nas macro-escalas. As dificuldades de acesso ao mercado ainda incipiente que o estado representa impõem uma barreira aos fornecedores motivados apenas por economias de escala, abrindo espaço para os artesãos, pequenos agricultores e comerciantes locais e possibilitando a construção de uma economia regional.
Entretanto, as pressões para a interligação com os fluxos dominantes vêm da escala global e são inexoráveis; com certeza trarão modificações profundas para os processos regionais e locais, mesmo no curto prazo.

2. As Contradições das Políticas Públicas de Integração
A política de integração comercial e econômica do Brasil com os países da América Latina supõe uma estrutura viária desenvolvida no continente. Esta perspectiva, já enunciada no plano do governo anterior, também está contemplada no plano de obras do governo atual.
A integração da América Latina tem sido negociada em várias dimensões, e a integração física tem sido orquestrada desde 2000 pela IIRSA — Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul Americana — uma iniciativa política dos doze países da América do Sul que reúne diversos projetos sub-regionais de construção de estradas, hidrovias, barragens e outras obras, em diversos eixos de desenvolvimento. O objetivo é promover uma integração maior dos mercados da América do Sul e suprir a precariedade da infra-estrutura de transportes e comunicação, considerada um entrave ao desenvolvimento (www.iirsa.org).
Um dos eixos de desenvolvimento previstos é o Eixo Amazonas, no qual se destacam quatro agrupamentos principais de integração física, entre os quais, o Grupo 4 promove a interconexão Guiana-Suriname-Guiana Francesa-Brasil (BRASIL, s.d., p. 104). Este eixo, com dois corredores de vias em operação — um no espaço de integração Norte-Sul e outro no Norte-Atlântico-Caribe —, que não se conectam entre si (BRASIL, s.d., p. 103), está sendo previsto e complementado principalmente através da pavimentação de trechos da BR-156 no Amapá e da construção da ponte entre o Brasil e a Guiana Francesa
A articulação promovida pela IIRSA carrega em si as contradições entre a necessidade de preservação ambiental, a necessidade de sustentabilidade econômica e social e as pressões para a exploração da base natural da Amazônia. Ao mesmo tempo em que se fala em “aproveitamento sustentável e estratégico da riqueza” e que o objetivo da iniciativa no eixo em questão é “consolidar uma conexão física internacional para promover o desenvolvimento sustentável e a integração (...)” (PARES, 2006), destaca-se o potencial econômico de atividades não-sustentáveis ligadas, por exemplo, aos “importantes recursos naturais ainda subexplorados” ou à “produção de soja transgênica”, que com certeza deverão ser estimuladas pela melhoria da rede de transportes.
Assim, as políticas públicas na Amazônia têm dado ênfase à melhoria da infra-estrutura, ao fomento do crescimento econômico regional e ao fortalecimento da integração com o mercado, mas “não têm mostrado qualquer componente ambiental (...) ou relevância social” (KOHLHEPP, 2002, p. 50). Planos Plurianuais do governo federal tais como o Brasil em Ação (1997-99) e o Avança Brasil, para 2000-2003, (KOHLHEPP, 2002, p. 48), geram um importante potencial de “conflitos de grande significado regional”, na medida em que interesses privados envolvidos não levam em conta as necessidades da população local e regional, nem o desenvolvimento sustentável — compromisso, entretanto, assumido devido ao PPG-7¹ (KOHLHEPP, 2002).
O discurso da sustentabilidade, uma das bases do PPG-7, nasceu das preocupações de grupos ambientalistas com o impacto da economia sobre o meio-ambiente; foi este o foco original da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento — reunida pela primeira vez em outubro de 1984 (CMMAD, 1993). Contudo, as mudanças ocorridas em nível mundial, a partir da emergência da ordem neoliberal, da intensificação da globalização, da revolução nas comunicações e dos avanços na genética, modificaram a ideia de sustentabilidade, atribuindo-lhe diversos  sentidos e levando à inclusão da preocupação ecológica e da economia ambiental no âmbito das políticas e nos planejamentos estatais. O eixo central da discussão passou, então, para outras preocupações das ciências sociais: questões do poder, da distribuição e da equidade (REDCLIFF, 2003).
O desenvolvimento sustentável está desta forma intrinsecamente ligado ao território e tem grande interseção com o conceito de desenvolvimento endógeno e regional, que é a base de um novo paradigma, surgido a partir do início dos anos 80, que enxerga o território como “agente de transformação e não mero suporte dos recursos e atividades econômicas, uma vez que há interação entre as empresas e os demais atores, que se organizam para desenvolver a economia e a sociedade” (BARQUERO, 2002, p. 39). Os processos de industrialização endógena “estão firmemente enraizados no território” e têm se caracterizado como uma estratégia para a ação, liderada pela comunidade local (BARQUERO, 2002, p. 39).
A contradição entre o modelo de desenvolvimento sustentável e o modelo de competitividade e inserção no mercado mundial de exportação (MELLO e THERY, 2002), observada na aplicação de determinadas políticas públicas na Amazônia, caracteriza uma dimensão social que “constitui um paradoxo por realizar-se destruindo, em nome dos ganhos presentes de poucos, os mais preciosos trunfos para um futuro melhor para todos” (COSTA, 2005, p. 183).
Dentro deste contexto, a pavimentação da BR-156 e a construção da ponte possuem um potencial contraditório e poderão servir tanto ao desenvolvimento endógeno e sustentável quanto ao crescimento indiscriminado e predatório.

3. A Conclusão da Rodovia BR-156 viabilizada pela Ponte
A pavimentação da rodovia BR-156 é uma etapa de integração que pode trazer amplos benefícios para a articulação interna do estado – apesar dos riscos ambientais que daí decorrem – ligando as suas principais cidades, permitindo o fluxo de mercadorias e escoamento da produção das regiões rurais. A construção tem sido feita em ritmo lento, desde a década de 50: o primeiro convênio e delegação de construção do DNER ao DER/Amapá foi assinado em 1957. Um novo convênio assinado em 1976 previa a conclusão e melhoramentos (SANT’ÁNNA, 1998).

A rodovia, hoje totalmente concluída, com extensão de 590 km, tem características de rodovia pioneira e revestimento sílico-argiloso e tem seus primeiros 245 km pavimentados a partir de Macapá. Faz parte da rodovia litorânea do Atlântico Sul, integrante do Sistema Pan-americano de Rodovias (Ibid. p. 29).

A perspectiva da construção da ponte entre o Amapá e a Guiana Francesa imprimiu um novo ritmo ao projeto de pavimentação. O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão contempla em seus estudos já em 2004 (MPOG, 2004) “as obras de Construção de Trechos Rodoviários na BR-156 no Estado do Amapá dos municípios de Ferreira Gomes até Oiapoque (Fronteira com a Guiana Francesa)” e “obras de construção da ponte com 930m de extensão, inclusive acessos e obras complementares”, com o objetivo declarado de “interligar o Brasil aos países vizinhos da região Norte (Guiana Francesa e Suriname), possibilitando a utilização do Porto de Macapá pelos países vizinhos para seu intercâmbio comercial” (MPOG, 2006, p.1).
Desta forma, constata-se que, apesar de seu importante papel na integração dos municípios do Amapá, a efetiva operação da rodovia só está sendo viabilizada pela construção da ponte e de sua importância na agenda internacional. A construção da ponte, entretanto, representa uma etapa na integração regional que traz diversos riscos para o desenvolvimento endógeno, embora também abra espaço para algumas oportunidades. Torna-se, assim, imprescindível que se entendam as dimensões da dialética global/local na região para elaborar estratégias que priorizem a sustentabilidade.

4. Guiana Francesa: Uma História de Isolamento
A Guiana Francesa enfrentou os problemas típicos da região durante a colonização, mas, devido ao seu isolamento com relação ao restante do continente, apresenta um histórico de tentativas de povoamento sempre mal sucedidas. Segundo Barret (2005), apenas 30.000 dos 500.000 ameríndios que se estabeleceram no planalto das Guianas escolheram se instalar no que veio a se tornar a Guiana Francesa. O encontro com os europeus lhes foi fatal e, vítimas principalmente de epidemias, rapidamente eles foram reduzidos a 3.000.
A colonização por parte dos europeus, por sua vez, foi insuficiente e pobre, fato que inibiu as possibilidades de obtenção de mão-de-obra escrava, já que a falta de negócios lucrativos afastava os navios negreiros. Algumas tentativas de povoamento branco foram empreendidas, sem sucesso, devido às difíceis condições locais.
As colônias penais para trabalhos forçados — le bagne — implantadas em 1850 e desativadas em 1952, também não conseguiram estimular o povoamento. O fluxo de prisioneiros nestes anos foi constante e importante, entretanto, devido à alta mortalidade, não há hoje qualquer traço visível das 68.000 pessoas que foram para aí enviadas (BARRET, 2005).
Na segunda metade do século XIX, foram registradas algumas migrações voluntárias, controladas e estimuladas pelo Estado por meio de garantias diversas aos eventuais colonos, numa iniciativa que poderia ter dado origem a uma atividade agrícola mais estável se não tivesse havido a descoberta do ouro em 1855: o ouro provocou o desvio de mão-de-obra para a mineração e novas ondas de imigração, desordenadas, anárquicas, de caráter unicamente masculino e exploratório, com uma população que não se fixou no local. Outras imigrações para a região foram registradas no século XX, em números que não chegaram a ser significantes (Ibid.).
A história local registra assim um déficit constante de população, com desequilíbrio de sexos, pobreza do território, condições de vida deploráveis, carências alimentares e alta taxa de mortalidade. Foi apenas em 1965 que houve uma melhoria, com a transformação da Guiana em departamento francês (Ibid.).
Nos anos 80, o departamento adquiriu uma configuração sócio-demográfica próxima da atual: assistiu-se ao aumento da chegada de imigrantes, devido a problemas no Suriname, à construção da base espacial de Kourou e da barragem de Petit Saut, com uma forte urbanização (LESCURE, 2002; GUILLEMET, 2005).
A economia da Guiana, que tem apenas 160.000 habitantes, se enquadra no que se convencionou chamar de micro-economia.² Do ponto de vista da análise econômica, nestes casos, o tamanho reduzido do mercado interno limita o acesso aos rendimentos crescentes de uma economia de escala — o que geralmente leva a um nível de produção relativamente ineficaz, a uma tendência à especialização e a dificuldades de desenvolvimento industrial e diversificação. Em geral estas economias são mais abertas do que outras para compensar o tamanho reduzido do mercado interno através do acesso ao mercado mundial. Entretanto, a combinação de um mercado interno reduzido com o isolamento, que leva a um aumento nos custos de transporte e de transação e a uma desconexão entre os preços interiores e os preços mundiais, constitui um empecilho ao desenvolvimento (JACQUET e NAUDET, 2006).
No caso da Guiana, a ligação com a metrópole atua como paliativo para esta situação e promove o desenvolvimento por meio de relações comerciais privilegiadas, do acesso às políticas públicas nacionais (educação, serviços públicos, inovações tecnológicas) e do recurso a políticas públicas específicas que visam uma convergência do nível de vida do departamento com o da metrópole. A economia da Guiana desta forma é relativamente diversificada quanto ao mercado interior (Ibid.).
Em 2005, as exportações da Guiana se elevaram a 92,9 milhões de Euros. A venda de bens intermediários representa aproximadamente a metade destas exportações (entre os quais 46% correspondem à venda do ouro), que inclui também uma pequena produção de artigos de madeira; 70% das exportações de ouro são destinadas à metrópole, 25% à Suíça e uma pequena parte ao Brasil (CAMESELLA, 2005).
Um quinto das vendas se refere ao setor de equipamentos e é quase que exclusivamente destinado à metrópole, com exceção de uma pequena produção de máquinas de uso geral destinada à Itália. O automóvel entra com um pouco menos que um oitavo nas exportações tendo como principais clientes a Itália e a Alemanha (Ibid.). As indústrias agro-alimentares respondem por um sétimo das vendas, que além da metrópole são encaminhadas à Martinica e Guadalupe. As receitas das exportações de bens de consumo (vestimentas e materiais audiovisuais) e as agrícolas (que correspondem a apenas 0,6%) são bastante fracas (Ibid.).
As importações chegam a 738,6 milhões de Euros O departamento é particularmente deficitário quanto a produtos agrícolas, agro-alimentares (que representam 20% das importações), bens manufaturados (65% das importações) e produtos energéticos (13% das importações) (CAMESELLA, 2005).
O abastecimento da Guiana é em grande parte feito por meio de produtos da metrópole, de onde provêem 42% das importações: a França fornece a metade dos bens intermediários de que o território necessita (materiais elétricos, metalúrgicos, plásticos etc.) 41% dos bens de consumo (produtos para-farmacêuticos e cosméticos, vestuário e móveis) 60% dos produtos agro-alimentares (75% das carnes) e 37% de seus equipamentos (telefones e telecomunicações, maquinário, materiais de informática e de escritório) (Ibid.).
Um pouco mais da metade dos veículos importados também tem como origem a metrópole; um de cada dez é alemão e um de cada nove é japonês. Do ponto de vista energético, a Guiana depende quase exclusivamente de Trinidade e Tobago (Ibid.), que fornece todo o petróleo refinado (CHANTEUR, 2006).
Apesar das relações estreitas com os países do Caribe, através dos movimentos de população, o fluxo do comércio com estes países é bastante fraco: em 2004, somente 11% das importações da Guiana eram fornecidas por eles, e apenas 3% das exportações se destinavam a eles. Em parte, a deficiência destas trocas pode ser atribuída às estruturas de produção destes territórios que são bastante próximas (CHANTEUR, 2006).
No que diz respeito às dinâmicas locais de população, a Ilha de Caiena concentra 54% dos habitantes, e existe uma explosão demográfica urbana, com crescente aumento de necessidades estruturais. Aproximadamente um terço da população é hoje de nacionalidade estrangeira e os brasileiros representam 15% da população (GUILLEMET, 2005).³
A emigração brasileira rumo à Guiana ocorre desde os tempos coloniais, tendo se reforçado principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, quando o ouro de Caiena sustentou a importação de alimentos — especialmente gado do Brasil — para o seu abastecimento (AROUCK, 2001).
O processo de emigração continuou, com alguns períodos de intensificação, tais como durante a construção do centro espacial de Kourou, ou na década de 80, com um movimento geral de saída do Brasil para diversos países. Atualmente, a emigração para a Guiana assume novas características, com um fluxo proveniente de Macapá e Belém para as áreas urbanas de Caiena e Kourou, de forma não oficial e desordenada — em busca de maior ganho salarial e maior apoio social por parte do governo local. Esse fluxo migratório afeta as economias de Macapá e Belém, pela remessa de dinheiro dos brasileiros emigrados a seus parentes no Brasil (AROUCK, 2001).

5. As Origens Geofísicas do Isolamento da Guiana
Todas as dificuldades de isolamento que a Guiana enfrentou ao longo da sua colonização e no seu desenvolvimento atual remetem, de certa forma, a sua situação geográfica e a suas características geofísicas.
Em todo o maciço das Guianas, o transporte fluvial não é viável, por apresentar cachoeiras e corredeiras, fazendo com que as regiões dos escudos sejam das mais isoladas e de difícil acesso.

A navegação destes rios é muito precária devido à maior parte de seus cursos serem obrigados a cruzar pelas duras rochas do maciço das Guianas — o que se traduz em quedas, cachoeiras e corredeiras que só podem ser navegadas em canoas e pequenas embarcações de motor (DOMINGUEZ, 2003, p. 82, trad.dos autores).

Além disso, as diversas bacias hidrográficas das Guianas são independentes, tanto do rio Amazonas quanto do rio Orenoco, desembocando diretamente no oceano Atlântico. (DOMINGUEZ, 2003).
Por outro lado, o isolamento é reforçado por determinadas características do regime hidro-fl uvial e marítimo a que a costa está sujeita. Talvez seja por isso que uma grande quantidade dos programas de pesquisa marinha sobre a Guiana Francesa tenha sido sobre sedimentologia e geomorfologia (ARTIGAS, 2003).

A migração na direção nordeste de bancos de silt vindos do Amazonas no coração de grandes sistemas de circulação atmosférica e oceânica do atlântico tropical é um fenômeno regional descrito na escala da costa da Guiana em diversos estudos (...) [De fato, existe ao longo de toda a área costeira da Guiana] uma dinâmica sedimentária muito ativa, marcada pela alternância de fases rápidas de sedimentação e erosão, ligadas a um movimento na direção noroeste, sob influência da corrente das Guianas, de um rastro de silt oriundo do Amazonas sob a forma de bancos de dezenas de quilômetros de comprimento (OLIVEROS, s.d., p. 2, trad.dos autores).

O transporte de partículas é operado pela combinação da ação de diversos agentes, entre os quais se destacam os rios locais, as marés, as grandes ondas e as correntes. Os rios locais têm grande impacto especialmente no que diz respeito à morfologia dos estuários, onde rios e ondas se encontram; as marés variam entre 2,90 e 8 metros, dependendo da época do ano e causam um fluxo transversal à costa, enquanto grandes ondas conhecidas como swell — em inglês — ou houle — em francês — vão de nordeste para leste com amplitude variando de 2 a 2,5 metros e profundidade entre 10 metros e 0,5 a 0,7 metros perto das praias (OLIVEROS, s.d.).
Por sua vez, a Corrente do Norte do Brasil (NBC) e sua extensão, a Corrente das Guianas, que de janeiro a julho flui para noroeste, completam o sistema carregando as águas do Amazonas com alta concentração de nutrientes e baixa salinidade e fazendo com que extensos blocos de lama ocorram e migrem ao longo da costa, especialmente ao norte da boca do Amazonas. Estes blocos de lama são progressivamente colonizados por várias espécies e num prazo de 3 a 5 anos já abrigam fauna específica (ARTIGAS, 2003).
Além de originar uma costa altamente sujeita ao processo de erosão e sedimentação, o regime hidro-fluvial e marítimo é fonte de inconvenientes para os portos que, pouco profundos, estão sempre sob processo de assoreamento e devem ser dragados em permanência. O porto de Dégrad des Cannes, que é o principal porto de comércio e seu canal de acesso, o rio Mahury, são objeto de dragagem constante, com um calado que se limita a 6 metros, sujeito à maré (RIPPERT, 2003).

A navegabilidade dos estuários é uma preocupação permanente para as autoridades marítimas e portuárias. A dinâmica sedimentária (silt, o desenvolvimento de bancos de silt, o assoreamento dos canais de acesso aos portos) leva à manutenção de determinadas áreas de fundo dos canais e, portanto, uma dragagem constante. O acesso permanente aos portos — os únicos elos aos suprimentos e exportações — deve ser assegurado (OLIVEROS, s.d., p.7, trad.dos autores).

Apesar de não existir ainda uma grande demanda de abastecimento, devido ao pequeno mercado que a Guiana representa, o calado reduzido do porto já delineia um problema que só tende a se agravar: alguns navios são obrigados a descarregar parte de suas mercadorias em outros portos (como por exemplo em Port of Spain -Trinidade, localizado a noroeste da Guiana) e redirecionar os containers por meio de um serviço de feeders (4) que vai das Antilhas à Guiana Francesa (www. schenker.fr).
A ligação com o Amapá vem, portanto, prover um acesso facilitado ao porto de Santana, que oferece uma alternativa para abastecimento e escoamento de mercadorias — prometendo ser valioso para a articulação da Guiana Francesa sob diversos pontos de vista.

6. O Porto de Santana como Estratégia de Logística
Principal porto da região, o porto de Santana está à margem esquerda do rio Amazonas, no canal de Santana, a 18 km da cidade de Macapá. Construído para apoio às atividades de mineração da ICOMI na década de 80, hoje serve principalmente à Amapá Florestal e Celulose S/A, AMCEL, para exportação de cavacos de madeira. Apesar de pequeno e com estrutura precária — serviços de rebocadores não organizados, manobras obrigatoriamente realizadas à luz do dia, além de área de armazenagem limitada, cais e píeres precários (www.cdp.com.br), o porto apresenta um bom potencial de exploração, devido a sua localização estratégica e a sua profundidade, que é suficiente para receber navios de grande porte, sem grande influência de marés — embora a barra norte do rio Amazonas esteja sob impacto expressivo das marés.
O grande calado (5) do porto de Santana faz com que seja um elemento chave do transporte intermodal.
Além disso, a posição geográfica estratégica da foz do Amazonas, bem mais próxima do hemisfério Norte do que os portos do Sul do país, permite a exportação da produção do Norte e do Centro-Oeste do País para os grandes mercados consumidores a preços mais competitivos (MMA, 2005, p 17).

O seu potencial como elo de um fluxo global de mercadorias é expresso no estudo de impacto da empresa MMX, que pretende explorar o minério de ferro no estado e adquiriu em 2006 um terreno no qual planeja construir um terminal portuário em área adjacente ao Porto de Santana.

Acreditamos que o Terminal Portuário de Santana terá capacidade para receber navios de dimensões do tipo Panamas e poderá, com operações de transshipping carregar navio do tipo Cape Size (6), porém com restrição atual de calado máximo de 11,5 metros, devido a limitações no canal de acesso na foz do rio Amazonas. Para permitir carregamento integral dos navios até o seu calado máximo, serão efetuadas operações de transbordo com navios de transferência que completarão a carga dos navios carregados parcialmente no porto de Santana (MMX, 2006, p 139).

A articulação do porto se faz através de três modalidades: rodoviária, pelas rodovias AP-010 e BR-210 encontrando a BR-156 nas proximidades de Macapá; marítima, pelo rio Amazonas, tanto pela Barra Norte, como pela Barra Sul; através do canal natural de Santana, braço norte do rio Amazonas; fluvial — pelo Amazonas e seus afluentes, principalmente o Jari. “Não existe acesso ferroviário; no entanto, uma ferrovia da região, a Estrada de Ferro Amapá (EFA), com 194 km desde a Serra do Navio até o terminal privativo da Indústria e Comércio de Minérios S.A. (ICOMI), em Santana, fica a 2 km do porto de Macapá”(www.transportes.gov.br). A articulação do porto com a rede hidroviária assume importância especial para o desenvolvimento regional.

7. O Transporte Hidroviário como Elo de Integração Regional
 Além de oferecer uma alternativa para o transporte de mercadorias na escala global, o acesso ao porto de Santana permitirá à Guiana participar da dinâmica regional por meio do transporte hidroviário, cujos custos de operação são menores, quando comparados com os modais rodoviário e ferroviário: “para se transportar uma TKU (1 tonelada de carga útil por 1 quilômetro) consome-se seis vezes mais combustível por rodovia do que por hidrovia.” (MMA, 2005, p.1), o que faz do custo um dos principais argumentos a favor deste tipo de transporte(7). A sua rentabilidade está ligada à relação tonelada/km ou passageiro/km, que no baixo Amazonas é bastante favorável, devido à profundidade do rio, a qual permite a navegação permanente de grandes navios de carga e passageiros (DOMINGUEZ, 2003).
O transporte hidroviário oferece ainda vantagens do ponto de vista de impactos sociais e ao meio ambiente, uma vez que está relacionado não só com um menor gasto de combustível, mas também com uma menor emissão de poluentes por quilômetro e tonelada transportada (MMA, 2005, p. 38).
O porto de Santana está integrado com toda a maior região hidrográfica do país, a Amazônica, através da Hidrovia do Amazonas, que tem cerca de 1.650 km, ligando as cidades de Manaus e Belém (MMA, 2005). A existência destas duas grandes cidades e das numerosas povoações pequenas e médias ao longo do curso — tais como Santarém e Macapá — gera uma relativa grande oferta e demanda de bens e serviços, o que estimula a navegação fluvial (DOMINGUEZ, 2003).
A Hidrovia do Amazonas permite a navegação de longo curso e de cabotagem (8) já que, em geral, não existem restrições à navegação no trecho, e está em contato com diversas outras hidrovias e rios navegáveis de menor porte. Ela “(...) desempenha alta função social de abastecimento e comunicação das comunidades ribeirinhas e de manutenção da brasilidade” (MMA, 2005, p. 15).
Saliente-se ainda a importância que deverá ter a construção da hidrovia do Marajó, de 425 km através da ilha de Marajó (MMA, 2005, p.17). Além de reduzir o percurso fluvial entre as cidades de Belém e Macapá em mais de 140 km, ela permitirá o trânsito de modernos meios de transporte fluvial de cargas, sendo mais uma opção de escoamento da produção do estado do Amapá (MDIC, 2003, p. 24).

8. Oportunidades e Riscos em um Contexto Multi-Escalar
Do ponto de vista global, a Amazônia constitui uma região de enorme confronto de interesses: como “acervo de biodiversidade e como base de prestação de serviços ambientais para a estabilização do clima global” (COSTA, 2005, p.183), sua preservação é amplamente defendida. Por outro lado, a exploração econômica de sua base natural se impõe, face às pressões das grandes empresas multinacionais, mas também face à busca de um desenvolvimento sustentável que privilegie as necessidades sociais da população local.
Os diversos governos, conscientes da importância estratégica e também econômica da Amazônia, não têm poupado esforços para afirmar sua presença no local, seja sob a forma de uma extensão territorial — como no caso da Guiana Francesa — seja através de missões científicas e militares, ou ainda por meio do apoio a empresas e empreendimentos.
A ponte que vai ligar a Guiana Francesa ao Amapá consolida a presença da França na Amazônia, dando-lhe acesso ao restante da região, da qual estava até então isolada, possibilitando, além da extensão de sua influência, uma melhor articulação com fornecedores e futuros mercados em potencial, através do porto de Santana.
O acesso ao porto, no que diz respeito à articulação regional, garante à Guiana a integração à dinâmica fluvial amazônica, que se abre para a possibilidade de um comércio compatível com sua escala de produção, ao mesmo tempo em que configura melhores perspectivas de evolução, coerentes com as necessidades das populações envolvidas.
O desenvolvimento das relações dentro da própria Amazônia tem, dessa maneira, o potencial de promover e consolidar a unidade regional, estruturada pela rede hidroviária, fortalecendo a região como um todo (MENEZES, 1999). Esta alternativa representa uma solução que respeita melhor a sua unidade natural e conduz a uma maior densidade política, orientada para o fortalecimento da rede de transportes interna e dos centros principais da região; o intercâmbio resultante contribuirá significativamente para ampliar o mercado regional (MENEZES, 1999; SANT’ANNA, 1998).
Desta forma, a Guiana Francesa, através do Amapá, poderá se integrar seja a dinâmicas regionais, seja a dinâmicas globais, interagindo com a Amazônia ou com o mundo: “esta ponte permitirá ‘desenclavar’ a Guiana na direção do sul, unindo assim Caiena aos centros econômicos brasileiros; além disso, esta construção se reveste de um forte valor simbólico” (FRANÇA, 2006, p.11, trad. dos autores).
As vantagens da integração para o Brasil, neste nível, são de outra ordem. A saída que se abre para o Caribe deverá ser mais interessante do ponto de vista do contato com os vínculos culturais e políticos mantidos pelas Guianas do que em termos de acessibilidade físico-espacial propriamente dita. No que se refere à logística, a ponte não oferece novas oportunidades representativas de articulação para o Brasil, e a própria Guiana francesa representa um mercado que só tem relevância nas relações locais. Entretanto, este departamento francês materializa o locus de interseção de diversos espaços geopolíticos (LESCURE, 2002) e, juntamente com o Suriname e a Guiana, tem mantido ao longo dos anos uma conexão muito mais forte com a Europa, o Caribe e a Índia do que com o resto da América do Sul (BRASIL, s.d., p. 104). As relações com a França são marcantes em todos os níveis, e existe um processo de interação forte com os países do Caribe através de movimentos migratórios e do turismo, apesar das exíguas relações de comércio mantidas com eles.
Um contato do Brasil com estes países, mediado pela Guiana Francesa, carrega, assim, o potencial de trazer “bons complementos ao desenvolvimento da Cultura Amazônica, que requer pontos de apoio para o assentamento humano com diversidade de conexões ao mundo” (BRASIL, s.d., p. 104).
Por outro lado, o Brasil também reforça espacialmente a sua política de consolidação do Mercosul, “desenvolvendo redes de transporte que incorporam as regiões mais distantes à economia nacional numa determinação política de integração dos mercados regionais” (MELLO e THERY, 2002, p. 5) — embora o projeto da ligação com as Guianas possua, “importância secundária para o esquema de circulação viária no âmbito continental” (AZEREDO, 2004, p.11).
Na consideração das implicações na escala local, os núcleos urbanos envolvidos estão intimamente vinculados à história da definição do limite internacional e a questões específicas das regiões de fronteiras (MENEZES, 1999). Tanto o Oiapoque como Saint Georges estão sob o efeito de fenômenos que muitas vezes só são perceptíveis na escala local/regional: destacam-se aí o alto dinamismo e instabilidade dos sujeitos a influências extremamente voláteis que também variam segundo os diversos níveis de atuação política dos dois governos processos (PATTARRA e BAENINGER, 2001).
Por um lado, a proximidade física — em contraste com a distância ou isolamento em relação aos centros regionais de cada lado da fronteira — tende a unificar, a partir de características comuns presentes no âmbito do território; por outro lado as respectivas políticas públicas, bem como as especificidades da formação histórica e cultural levam a diferenciações marcantes, constituindo limites de ação (PATTARRA e BAENINGER, 2001). Mesmo quando as populações de origem têm uma raiz cultural próxima e as mesmas tradições — como os povos indígenas — as orientações políticas de cada país definem trajetórias muitas vezes opostas.
A fronteira física, apesar de materializada nos 400 metros do rio Oiapoque, é facilmente transposta através das catraias, pequenas embarcações que atravessam dezenas de vezes de um lado ao outro, transportando pessoas, mercadorias e ideias. O controle da passagem pela fronteira só se faz a partir da saída de Saint-Georges em direção ao resto da Guiana. Entre Saint-Georges e Oiapoque, o fluxo é intenso e bastante livre.
Assim, são principalmente os impactos das políticas governamentais na redefinição e na reestruturação do espaço regional que constituem os verdadeiros limites. A política monetária da União Européia, cujos benefícios são estendidos à Guiana, como departamento ultramarino francês, faz do Euro uma moeda forte e confere aos guianenses um poder aquisitivo elevado no Brasil e mesmo no Oiapoque, onde a distância dos centros abastecedores e a precariedade dos meios de comunicação fazem com que os preços sejam bem mais elevados do que na capital do estado, Macapá.
As políticas sociais que geram desigualdade e pobreza no Brasil revelam um processo histórico de conflitos e também contrastam com a situação da Guiana, a qual atrai milhares de brasileiros que tentam usufruir dos benefícios acordados em um país com um sistema social avançado: o estado francês oferece vantagens tais como tratamento médico de qualidade, alocações diversas, auxílio-desemprego substancial, educação de nível elevado e o RMI — uma remuneração mínima de inserção – vantagens estas inexistentes ou inoperantes do lado brasileiro.
Este desequilíbrio se reflete na relação entre as duas fronteiras e nas características dos fluxos de pessoas: vindo da Guiana, um fluxo com o objetivo de explorar o acesso a preços mais baixos — inclusive de prostituição — e a pobreza no Brasil. Este fluxo tende a se reforçar, uma vez que a ligação facilitará a vinda dos consumidores guianenses, beneficiando diversas atividades locais e exercendo uma influência que poderá se estender até aos centros urbanos mais distantes, como Macapá.
No sentido oposto, o fluxo de emigração brasileira para a Guiana se estabelece em números que, se não afetam estatisticamente a população do Amapá, a qual apresenta elevado nível migratório, expressam as melhores oportunidades de trabalho e de assistência social que o país vizinho oferece (GUILLEMET, 2005). A eminência da interligação abre perspectivas para o acesso ao mercado de trabalho guianense, melhor remunerado do que o brasileiro.
Adicionalmente, ao longo da rodovia de acesso à ponte, a intensificação do tráfego com certeza vai incentivar o processo de instalação de colônias e povoados (MELLO e THERY, 2002), gerando problemas com a chegada de novos migrantes, falta de infra-estrutura urbana, conflitos fundiários, pressão para desmatamento e queimadas, ameaçando a sustentabilidade ambiental local.
A ponte deverá assim ter fortes impactos ambientais, sociais e econômicos, com efeitos marcantes sobre as populações locais e sobre os processos de urbanização. Os núcleos urbanos de fronteira com certeza serão os mais afetados, mas toda a população das comunidades vizinhas vai sofrer pressões, por meio de uma série de mudanças de caráter político, administrativo e geográfico, sob influências de ordem física, material ou simbólica.
A desigualdade entre os fluxos locais e entre as condições sociopolíticas dos dois lados da fronteira gera estereótipos que desfavorecem os brasileiros, num desequilíbrio contra o qual se deverão construir instrumentos de integração. A administração pública deverá prever impactos, analisar riscos e oportunidades, planejar e conceber estratégias para lidar com os novos problemas que vão surgir, em adição aos que já existem e que com certeza vão se agravar. Entretanto, estas estratégias deverão ser construídas de maneira que estejam em sintonia nos dois países envolvidos, numa integração que será tão mais difícil quanto maior for o desconhecimento do vizinho. Para que possam ser desenvolvidas estratégias convergentes dos dois lados da fronteira, o primeiro passo deverá ser no sentido de travar conhecimento. Faz-se imperativo que se desenvolvam formas de integração, tal como a construção de relações pessoais entre os funcionários das respectivas administrações ou uma aproximação dos setores econômicos homólogos de ambas as partes (BOIVIN, 2003).
Os termos de cooperação econômica devem ainda incluir, tanto quanto possível, a eliminação de entraves nas fronteiras, com regras que assegurem condições de igualdade dos parceiros em termos de trocas comerciais: as restrições à livre circulação e a elaborada estrutura de fiscalização prevista para coibir fluxos clandestinos e tráficos diversos (9) poderão ter o efeito de inibir o potencial de integração, as atividades turísticas e mesmo atividades comerciais lícitas, mas que na maioria das vezes nesta região ainda são de caráter informal.

Conclusão: A Construção de Políticas Públicas como Pré-Requisito para a Construção da Ponte
A Guiana Francesa é hoje um departamento subsidiado pela França, com uma população em grande parte sustentada por alocações governamentais e um nível social mantido artificialmente, bem acima das possibilidades da reduzida produção e organização econômica locais. Esta situação garante para a França, entretanto, uma presença estratégica na Amazônia e uma influência que poderá se estender com a construção da ponte. Os benefícios também poderão se fazer sentir na própria região: uma integração com a Pan-Amazônia e o acesso à rede hidroviária e intermodal através do Porto de Santana permitirá que a Guiana compartilhe das diretrizes gerais para o fortalecimento regional em busca de um desenvolvimento endógeno. Ao mesmo tempo poderá estimular o desenvolvimento de outros setores, tal como o agrícola, aproveitando os mercados externos já abertos pelo Brasil ou o próprio mercado que o Brasil tem o potencial de proporcionar para determinados produtos.
Por outro lado, porém, as vias de transportes melhoradas abrirão oportunidades para a exploração não-sustentável da base natural local. A integração vai ainda romper um relativo grau de imunidade que o departamento francês detém com relação à amplitude dos problemas das regiões vizinhas, aumentando a permeabilidade das fronteiras e a vulnerabilidade a tráficos diversos.
Do ponto de vista do Brasil, a integração possibilitará principalmente o incentivo a um comércio e produção baseados na interação local.
 A opção pelo desenvolvimento sustentável da Amazônia, entretanto, demanda o fortalecimento das dinâmicas internas e a diminuição das barreiras, não só geofísicas, mas também políticas, que existem entre os países, por meio da adoção de diretrizes definidas pela unidade natural da região e não pela compartimentação imposta por orientações políticas diversas.
Na análise estratégica de possíveis cenários futuros, os níveis de compreensão não são estanques: o local, o regional e o global se interpenetram em diversos planos de interseção, ora a se contrapor, ora a se reforçar, gerando paradoxos, mas também oportunidades a serem exploradas. Não há diagnósticos definitivos sobre a ponte: ela poderá promover a integração regional, mas também gerar conflitos e acentuar as diferenças políticas e ideológicas. Ela poderá fornecer elementos para a busca da sustentabilidade, mas também servir a propósitos de exploração e de destruição do meio ambiente. O comércio entre os dois lados da fronteira poderá ser estimulado, mas os tráficos também poderão se intensificar. Assim, mais importante do que a construção da ponte é a construção de diretrizes políticas e administrativas comuns — entre as diversas esferas de governo de cada país e entre os dois governos — que possibilitem o desenvolvimento econômico e social na região, fazendo ainda face ao desafio ecológico que a questão ambiental impõe.

Notas.
1 Programa Piloto Internacional para Conservação das Florestas Tropicais Brasileiras (PPG-7), para apoio financeiro à reorganização dos modelos de desenvolvimento regional para a Amazônia por parte dos paises do G7.
2 O critério mais frequentemente utilizado para classificar as micro-economias parece ser o tamanho da população, inferior a um milhão de habitantes (JACQUET, P. e NAUDET, J.D., 2006).
3 Dados de 1999.
4 Sistema de transporte em que a carga é embarcada em um navio menor e de lá direcionada para outro porto onde será recarregada em outro navio maior – o objetivo é atender portos com menor movimentação de cargas, baixo calado ou outras limitações que dificultam a atracação de navios maiores.
5 O calado, medido verticalmente a partir de um ponto na superfície externa da quilha, é a designação dada à profundidade a que se encontra o ponto mais baixo da quilha de uma embarcação. O conhecimento do calado do navio é fundamental para determinar a sua navegabilidade sobre zonas pouco profundas, em especial nos portos e em canais. Na região, o porto de Santana tem a mesma restrição do porto de Santarém, imposta pelo limite de 11,50 m na barra norte do rio Amazonas; já o porto de Belém tem um canal de acesso limitado a 5,10 m com 7,00 m na entrada e 7,30 m na saída. No contexto nacional, o calado de acesso ao porto de Santana se aproxima do calado de grandes portos, como o de Santos (12,8 m), Rio de Janeiro (12,3 m) e Paranaguá (12,0 m) (LACERDA, 2004)
6 “Panamax”: navios com capacidade de transportar em torno de 30.000 a 40.000 TPB, (de acordo com o maior tamanho que pode passar pelo Canal de Panamá); “Capesize”, navios de cerca de 100.000 TPB, (para realizarem, de forma mais econômica, a viagem pelo Cabo de Boa Esperança) (SCHOELER, 2000). Os navios Panamax podem carregar até o calado de 14 metros e os da geração Capesize podem carregar até o calado de 17 m (www.portalambiental.com.br/noticias51200402. php).
7 As relações entre custos operacionais unitários relativos, respectivamente, aos transportes desenvolvidos “sobre águas” e “sobre pneus” dependem das condições locais. Silva, Souza e Neto, em estudo sobre os custos do transporte no Brasil, adotam duas referências: uma relação de 1:3,7, de acordo com os dados observados pelo GEIPOT, em seu relatório acerca dos Corredores de Transporte para granéis agrícolas, levantados em 1995; e uma relação de 1:8 “admitindo-se a razão média observada no “mundo desenvolvido”, onde o transporte hidroviário é intensamente utilizado”(s.d.).
8 O transporte aquaviário de cabotagem é aquele realizado entre dois portos situados no território nacional.
9 “As obras dos locais afetados à polícia de fronteira, à alfândega, aos serviços veterinários e proteção de vegetais [devem durar] aproximadamente um ano. A presença destes diferentes serviços responde ao temor manifesto pelas autoridades locais de que esta ponte não venha a facilitar os diversos tráficos que afetam esta fronteira. O importante então é que esta abertura recíproca entre a Guiana e o estado brasileiro do Amapá seja acompanhada de controles adequados para que ela só favoreça as atividades comerciais lícitas” (FRANÇA, 2006).

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Originalmente publicado em


OIKOS | Rio de Janeiro | nº 7, ano VI • 2007 | ISSN 1808-0235 | www.revistaoikos.org | pgs 51-75

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