Constantes embates entre Estados Unidos e Rússia lembram a Guerra Fria
No final de 2013, milhares de manifestantes tomaram a Praça Maidan em Kiev, em protesto à decisão do presidente ucraniano Viktor Yanukovych de desistir de aliança da Ucrânia com a União Europeia (UE). Esses protestos culminaram na invasão do palácio do governo e levaram à saída de Yanukovych do país em um avião enviado por Moscou. A saída de Yanukovych de Kiev, somada aos problemas que levaram ao início das manifestções em Maidan desencadearam então um conflito interno que já dura mais de um ano e registra mais de 5 mil mortos.
O conflito na Ucrânia tem sido marcado por uma guerra de informações entre atores externos, em parte devido ao país ser estratégico para algumas das grandes potências mundiais da atualidade. Apesar de diferentes ideologias terem desempenhado importante papel na construção das identidades da população ucraniana – o Oeste possui laços com a Europa ocidental e o Leste com a Federação Russa -, os artigos anteriores desta série especial argumentam que essa influência possuiu um papel limitado nas decisões políticas do país.
O processo de tomada de decisões políticas na Ucrânia demonstra que atores internos seguem a lógica histórica de interesses (pró-ocidente ou pró-Rússia) até o ponto em que estes não se choquem com suas próprias ambições. Contudo, esses limites (nunca antes muito claros) se tornaram mais nebulosos após início da guerra de informações promovida por Estados Unidos e Rússia. Este último texto da série especial sobre a Ucrânia aborda o desenrolar dos protestos na Praça Maidan, a anexação russa da Crimeia (e posterior plesbicito que levou à separação da região da Ucrânia), a guerra de informações e suas implicações para o atual conflito no país.
Juntar-se à União Europeia ou receber um empréstimo russo?
Como discutido no segundo texto da série Ucrânia, após ter assumido o poder em 2010 Viktor Yanukovych (apoiado pelo Leste pró-Rússia), apesar de ter se mantido firme em não se associar à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), buscou aproximação com a União Europeia devido a graves problemas enfrentados pela economia do país. Com forte desaceleração do crescimento do PIB einflação atingindo índices superiores a 8% em 2011, se aproximar do bloco europeu seria plausível do ponto de vista econômico. Yanukovych e o então presidente da UE José Manoel Barroso se reuniram diversas vezes para definir os termos da integração ucraniana ao bloco.
Em meados de 2013, pesquisas mostravam que cerca de 40% dos ucranianos apoiavam aproximação com a UE, 30% eram favoráveis a uma União Aduaneira com Rússia, Casaquistão e Bielorússia, 13% era contra ambos os acordos e os demais estavam indecisos. Mas do que se tratava exatamente o acordo com a UE?
O denominado Acordo de Associação Ucrânia-UE englobava inicialmente duas esferas: associação política e integração econômica. O acordo incluía o apoio europeu à recuperação da economia ucraniana por meio de reformas econômicas, políticas (com intuito de combater a corrupção) e cooperação em setores estratégicos como energia, transporte, proteção ambiental, desenvolvimento industrial e combate à pobreza. O Acordo previa ainda uniformizar normas de comércio, padrões de qualidade e leis, a fim de impulsionar as trocas comerciais entre as partes envolvidas.
Umas das intenções do Acordo era diversificar os destinos das exportações ucranianas, até então bastante concentradas nos países vizinhos, principalmente na Rússia. Com receio de perder um importante parceiro comercial, especialmente em função do gás natural, Moscou fez inúmeras tentativas de impedir o país de firmar à associação com a UE, incluindo o convite para a Ucrânia se tornar um dos membros da União Eurasiática.
De acordo com o embaixador russo para a UE, a Ucrânia sofreria com um acordo de livre comércio com o bloco europeu. Portanto, a proposta russa traria maiores benefícios para Kiev. Entre 2010 e 2013, Yanukovych trabalhou para convencer Moscou de que um acordo com a UE não significaria um afrouxamento de laços com a Rússia. O presidente russo, Vladimir Putin, contudo, permaneceu contrário ao acordo.
A decisão de Yanukovych e os protestos em Maidan
Após intensa negociação, em novembro de 2013, Yanukovych confirmou a decisão de não assinar o Acordo de Associação com o bloco europeu. Dias depois, aceitou um empréstimo de US$15 bilhões oferecido por Putin. A decisão criou tensões com a população do Oeste ucraniano e levou à invasão da Praça Maidan, em Kiev.
O número de manifestantes acampados em Maidan crescia exponencialmente a cada dia e confrontos com a polícia especial ucraniana, Berkut, eram frequentes. A violência aumentou e manifestantes acusavam a Berkut de uso desproporcional da força, acirrando ainda mais os ânimos entre os opositores do governo e Yanukovych. Em 10 de dezembro, a Berkut e tropas do exército tentaram retirar os manifestantes da Praça e seus arredores, provocando ainda mais violência. O governo, contudo, negava agir de forma truculenta, declarando que policiais apenas reagiam às agressividades dos manifestantes.
Apesar da brutalidade da polícia, manifestantes permaneceram em Maidan e os protestos se espalharampor várias cidades da região Oeste do país, onde prédios públicos foram tomados. Em fevereiro de 2014, a situação se deteriorou, com denúncias de violência e uso de armas de fogo em ambos os lados. Em 20 de fevereiro, após um violento confronto que matou quase 100 manifestantes, o Parlamento ucraniano decidiu que um novo governo deveria ser formado. Novas eleições foram convocadas. Algumas horas após a decisão do Parlamento, Yanukovych deixou Kiev em direção à Rússia.
O retorno da Crimeia à Rússia
A saída de Yanukovych e as tensões em Kiev, levaram a Rússia a iniciar exercícios militares na fronteira com a Ucrânia e na base russa no Mar Negro, localizada na península da Crimeia. Alguns alegam quetropas russas entraram na Crimeia e ajudaram ucranianos a tomarem prédios do governo. É importante lembrar que a região faz parte do Leste (em termos de proximidade ideológica e de identidade) e sua população, portanto, possui laços históricos muito mais estreitos com Moscou do que com o novo governo que indicava ser formado em Kiev.
Tal ação gerou grande repercussão internacional, acirrando tensões entre Rússia e ocidente. Isso também levou à realização de um plebiscito sobre a autodeterminação do povo da região. O referendo de 16 de março confirmou a vontade da população da Crimeia em se juntar à Federação Russa, com um resultado de 97% a favor da separação da Ucrânia.
Após a confirmação oficial de Putin de que a região passaria a integrar a Rússia, Estados Unidos e União Europeia impuseram diversas sanções em resposta à participação russa no conflito. O foco das sanções era a indústria energética, sendo que dezenas de empresas importantes no setor foram proibidas de fazer negócios com Moscou. Estados Unidos e UE ofereceram ao novo governo em Kiev um empréstimo de US$ 16 bilhões com objetivo oficial de recuperar a economia ucraniana. Por outro lado, é possível argumentar que o empréstimo também visava fortalecer Kiev, face às possíveis investidas russas nas fronteiras de cidades como Donestk, Kharkiv e Lugansk. Também com este objetivo, a OTAN reativou operações nos países bálticos e cessou cooperação com a Rússia na região.
Após a separação da Crimeia, protestos pró-Rússia eclodiram nas principais cidades do leste ucraniano. Desde maio de 2014, embates violentos têm sido observados entre grupos que buscam a independência em diversas regiões (incluindo algumas no Oeste) e tropas ucranianas.
O conflito atual e a guerra de informações
O conflito na Ucrânia tem como uma das principais características a guerra de informações promovida por Rússia e o Ocidente. De um lado, EUA e UE acusam Moscou de enviar tropas russas e fornecer armas para grupos separatistas em lugares como Donestk, Kharkiv e Lugansk. Do outro, Putin refuta as acusação e declara que Washington e a UE estão se aproveitando da fragilidade ucraniana para ampliar o domínio econômico e militar na região. Vale lembrar que ambos os lados estão corretos em suas afirmações, uma vez que ambas as partes possuem interesses estratégicos na Ucrânia.
A troca de acusações entre as partes passou a dominar as notícias. A situação remete a tensões da Guerra Fria, quando conflitos internos de alguns países eram observados sob a óptica capitalista ou socialista. Apesar de ter ampla influência na dinâmica interna atual do conflito na Ucrânia, essa guerra de informações mascara o real desejo dos ucranianos.
A Rússia apoia uma reforma constitucional que instaure um sistema federativo na Ucrânia, possibilitando grande autonomia para cada região do país. Os EUA e UE, por outro lado, estão interessados na abundância de gás natural em regiões pró-Rússia e se opõem ao sistema federalista. Adeamais ainda há desejo de trazer trazer o país para a OTAN e possivelmente instalar um escudo de defesa anti-misseis. Mas o que pensa a população Ucraniana?
Não é possível chegar a uma conclusão baseando-se apenas em questões econômicas ou exclusivamente em questões de identidade histórica e ideológica. Ambos influenciam a dinâmica interna do país, contudo, interesses econômicos tendem a sobrepor alinhamento ideológico quando há iminência de crise financeira. Dessa forma, é preciso buscar uma solução multifacetada, que respeite as diferenças ideológicas presentes no país e ao mesmo tempo promova reformas que levem a desenvolvimento econômico e social.
O debate é muito mais denso e compexo do que separar algumas regiões ou manter a integridade territorial do país. Não somente porque EUA e Rússia dificilmente concordariam com uma decisão tão simplista, mas principalmente porque as divisões da população possuem diversas dimensões. Por exemplo, muitos no leste são pró-Rússia, contudo não gostariam de fazer parte da Federação Russa. O contrário também é observado em diversas partes do Oeste ucraniano.
A tendência em centrar o debate sobre o conflito na Ucrânia entre duas identidades reproduz uma narrativa externa que é do interesse tanto dos Estados Unidos como da Rússia. É essencial ir além e olhar quais as repercussões internas para a população a fim de se colocar fim ao conflito e garantir a manutenção da paz a longo prazo. Paz esta que está condicionada a inúmeras questões como concialiação de identidades e etnias, crescimento econômico, reforma política para combater corrupção e desenvolvimento social.
Mestre em Políticas Sociais para Países em Desenvolvimento pela London School of Economics. É especialista em políticas de inclusão social com foco em África e Ásia.
http://politike.cartacapital.com.br/o-conflito-da-ucrania-e-a-guerra-de-informacoes/
Nenhum comentário:
Postar um comentário