Grupo avança passo a passo na consolidação dos marcos de sua constituição como bloco
A cooperação entre os Brics (grupo de economias em desenvolvimento composto por África do Sul, Brasil, China, Índia e Rússia) vem se intensificando a cada ano e abrange uma ampla gama de temas e modalidades. Desde a sua criação, a principal arena de atuação do grupo tem sido nas instituições financeiras multilaterais e no G20, objetivando a sua democratização. Tendo emergido no ambiente da crise global desencadeada em 2008, o bloco priorizou a agenda econômico-financeira e os respectivos fóruns onde houvesse a possibilidade de defesa de suas economias e de iniciativas conjuntas para ganharem peso em meio às incertezas das economias das potências tradicionais.
A atuação conjunta do bloco, no entanto, vem se alargando e abrangendo novas agendas, merecendo destaque iniciativas e projetos de cooperação intra-bloco e atuação conjunta nos fóruns sobre cooperação internacional. Cabe ressaltar, por exemplo, a recente realização daIV Reunião de Ministros de Saúde dos Brics, na qual foi aprovado um plano de cooperação do bloco, considerado por muitos analistas como um marco histórico na cooperação internacional em saúde em relação às doenças negligenciadas pelas multinacionais da indústria farmacêutica e pelos países do Norte, como a tuberculose, entre outras.
No que se refere ao sistema de cooperação internacional ao desenvolvimento, há um consenso de que oIV Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda, realizado em 2011, em Busan, na Coreia do Sul, representou um marco na trajetória do sistema de cooperação internacional, em especial porque nele foram reconhecidas a existência e a importância da Cooperação Sul-Sul. O Fórum de Busan expressou o novo contexto da cooperação internacional, em que se movem múltiplos atores e se reduz a centralidade dos doadores tradicionais reunidos no Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da Organização para a cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A Declaração de Busan anuncia uma parceria global, que abrange os doadores tradicionais, a Cooperação Sul-Sul, as economias emergentes, as organizações da sociedade civil e os financiadores privados, apontando que a cooperação internacional tende a se tornar um sistema multipolar e não mais somente Norte-Sul. Além disso, reconhece que os progressos realizados na implementação da agenda da eficácia – construída na trajetória dos fóruns anteriores, em especial em Accra e Paris – continuam muito aquém do esperado, pois a arquitetura da ajuda internacional sofreu mudanças profundas na última década e é preciso alargar a agenda da eficácia da ajuda para uma perspectiva mais abrangente de “eficácia do desenvolvimento”. A parceria global une, sob princípios comuns, diversos elementos e atores da nova arquitetura da ajuda, como os novos doadores e o setor privado, definindo graus diferenciados de compromisso para cada um, no pressuposto de que a ajuda pública é apenas um dos elementos necessários para a promoção do desenvolvimento sustentável.
A posição dos Brics em Busan foi de observação e de não assinatura da Parceria Global. O fato de que a parceria global ainda não tenha se constituído no âmbito da OCDE gerou resistências no bloco e resultou na não formalização de sua participação. Afinal, como Busan sinalizou que a cooperação internacional está se tornando um sistema multipolar, o Brics resistiu a se comprometer com os parâmetros, as condicionantes e as regras tradicionais da OCDE. Ficou claro que os Brics desejam desenvolver suas políticas e seus programas de cooperação sem que sejam regulados e constrangidos em seus interesses.
Desde a sua criação, em 2009, a cada cúpula realizada, o Brics avança passo a passo na consolidação dos marcos de sua constituição como bloco. É parte desse processo a assinatura de inúmeros acordos de cooperação em um amplo leque de setores. A Declaração de Fortaleza, tirada na Cúpula realizada em 2014 no Ceará, deixou clara, com seus 72 pontos de agenda, a disposição do bloco de atuar em uma vasta agenda de temas estratégicos em disputa na arena global. Nas declarações e nos atos assinados, os Brics estabelecem acordos de cooperação, como o Acordo Contingente de Reservas, o Memorando de Entendimento sobre Cooperação entre Agências de Seguro de Crédito à Exportação, um Acordo de Cooperação em Inovação entre os bancos nacionais de desenvolvimento dos países membros e o Acordo de Criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), que teve sessão inaugural realizada na terça-feira 7.
Com o aporte de capital inicial de US$ 50 bilhões e perspectiva de chegar a U$ 100 bilhões, o NBD emprestará somente para os membros do bloco, mas a sinalização dada é a de que depois também concederá recursos para não membros. Sua finalidade principal será o financiamento de projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável, mas os governos reconhecem que não há definição alguma sobre o significado dado ao desenvolvimento sustentável. Afirmam, no entanto, o desejo de atuar conjuntamente em relação às mudanças climáticas e fortalecer as metas do desenvolvimento sustentável e a energia renovável.
O perfil de cada membro do Brics revela que, embora haja especificidades, há também muitos elementos comuns, tais como a definição de diretrizes para a cooperação de acordo com os interesses de política externa de cada país (o que também é uma característica dos doadores tradicionais), uma relativa baixa institucionalidade, a ideia de parcerias horizontais e a convergência entre programas de cooperação e investimentos, tornando difícil a delimitação do universo da cooperação propriamente dita entre muitos outros aspectos.
A evolução da Cooperação Sul-Sul e, em especial, da cooperação do Brics nos anos recentes levanta um conjunto de questões que demandam acompanhamento, debate e incidência por parte das organizações da sociedade civil.
Em primeiro lugar, a participação do Brics no Fórum de Busan sinaliza uma posição consolidada de interesse em disputar, como ator político, a agenda do sistema de cooperação internacional ao desenvolvimento ou o bloco estaria adotando uma postura mais defensiva e de resistência às restrições postas pelas regras do CAD/OCDE? O Brics gostaria de erguer um novo regime multilateral e novas regras para a cooperação ou não? Neste caso, como o bloco trataria temas sensíveis, como, por exemplo, condicionalidades em direitos humanos e participação social para a aprovação de projetos de cooperação?
Os Brics concebem sua cooperação como parte de uma agenda geopolítica que visa a aumentar o poder desses países na ordem global, relacionada inclusive à sua participação em outras instâncias globais, como o G20 e as instituições financeiras multilaterais, ou sua cooperação estaria mais orientada a viabilizar seus interesses de internacionalização de empresas, ampliação de investimentos internacionais, promoção comercial e exportação de serviços? A cooperação realizada pelos países do bloco tem potencial de ser qualitativamente distinta da Cooperação Norte-Sul? A narrativa da horizontalidade e do compartilhamento de experiências se realiza na prática? Até que ponto a cooperação dos Brics pode ser de fato separada da Cooperação Norte-Sul, tendo-se em vista o peso da cooperação trilateral e o fato de que os países dos Brics são, ao mesmo tempo, doadores e receptores? Ou seria esta cooperação complementar e subsidiária à CNS? Os Brics aportarão recursos suficientes para a cooperação internacional a ponto de serem significativos frente aos recursos do CAD/OCDE?
A crescente cooperação dos Brics ainda precisa avançar muito em seus aspectos conceituais e institucionais. Não raro existem problemas de ausência de marcos legais, de estruturas organizativas consolidadas, informação, transparência, mecanismos de monitoramento e prestação de contas, de controle público e participação social. A carência de uma institucionalidade dotada de mecanismos democráticos de acompanhamento produz importantes bloqueios à análise, ao monitoramento, à coordenação entre programas e projetos em países receptores e à consolidação da cooperação nos Brics como um caminho de reforma democrática do sistema de cooperação internacional.
Finalmente, é conhecido que as concepções e prioridades de desenvolvimento adotadas por um país se expressam e se projetam em suas políticas e em seus programas de cooperação. No caso dos países do Brics, não é diferente: seus modelos de desenvolvimento internos se refletem, com suas potencialidades e contradições, nos programas de cooperação implementados nos países receptores. É sabido também que tais modelos são fontes de importantes conflitos domésticos nos países membros do Brics, o que torna os temas da participação social e da democratização do processo decisório frente à formulação das políticas de cooperação internacional assuntos prioritários para todos os países membros do Brics.
*Esse artigo integra o estudo “BRICS e e Cooperação para o Desenvolvimento Internacional“, realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e apoiado pela ONG internacional Oxfam.
Fátima Mello é graduada em História e mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Foi também da secretária-executiva e coordenação da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).
http://politike.cartacapital.com.br/o-papel-do-brics-na-cooperacao-internacional/
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