terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O que pretende o anarquismo? (6)

OS ANARQUISTAS SÃO INDIVIDUALISTAS OU COLETIVISTAS?

A resposta curta é: nenhuma das duas Pode-se ver pelos fatos que os liberais eruditos acusam anarquistas como Bakunin de serem "coletivistas" ao passo que os marxistas atacam Bakunin e os anarquistas em geral de serem "individualistas". Não é de surpreender, uma vez que os anarquistas rechaçam ambas ideologias como tolices. Gostem ou não, os individualistas não anarquistas e os coletivistas não anarquistas são as duas caras da moeda capitalista. Isto se demonstra considerando o capitalismo moderno, onde as tendencias "individualista" e "coletivista" continuamente se influem mutuamente, muitas vezes com o pêndulo da estrutura política e econômica oscilando de um extremo a outro. O coletivismo e o individualismo capitalista são aspectos parciais da existencia humana, e da mesma forma que todas as manifestações de desiquilibrio, estão profundamente degeneradas.
Para os anarquistas, a ideia de que os individuos deveriam sacrificar-se "pelo grupo" ou "pelo bem comum" não tem sentido. Os grupos são formados por individuos, e se as pessoas pensam somento no bem estar do grupo, esse grupo será uma casca sem vida. Somente a dinâmica do intercambio humano dentro de um grupo é o que lhe dá vida. Os "grupos" não podem pensar, apenas os individuos pensam. Ironicamente, este fato leva os "coletivistas" autoritarios à classe de "individualismo" mais peculiar, o "culto da personalidade" e a adoração do lider. É de se esperar, uma vez que tal coletivismo amontoa os individuos em grupos abstratos, lhes nega sua individualidade e acaba precisando que alguem com suficiente individualidade tome decisões; os 
problemas se "resolvem" com as ideias do líder. O Stalinismo e o Nazismo são excelentes exemplos deste fenômeno.
Estas considerações não significam que o "individualismo" encontre apoio entre os anarquistas. Como assinalou Emma Goldman, "o individualismo exacerbado ... não é mais que uma tentativa dissimulada de reprimir e de derrotar o individuo e a sua individualidade ... invariavelmente resulta no incremento das distinções de classe ... supondo todo o individualismo para os amos, enquanto que o povo é arregimentado em uma casta de escravos a serviço de um punhado de super homens egoístas" [Habla Emma La Roja, p. 89].
Enquanto os grupos não pensarem, os individuos não poderão viver nem discutir por si sós. Todavia, devido a sua perspectiva desequilibrada, os "individualistas" acabam apoiando algumas das instituições mais "coletivistas" que existem: as empresas capitalistas, e alem disso, sempre defendem a necessidade de um estado apesar de suas frequentes acusaçõs contra ele. Estas contradiçòes nascem da dependencia do individualismo capitalista de contratos individuais em uma sociedade desigual, ou seja, um individualismo abstrato.
Em contraste, os anarquistas acentuam o individualismo social. O anarquismo "insiste que o centro de gravidade da sociedade é o individuo, que tem que pensar por sim mesmo, atuar livremente, e viver plenamente ... Se alguem quer desenvolver-se livre e plenamente, tem que se ver livre da interferencia e da opressão dos outros... Isto nada tem a ver com ... individualismo exacerbado. Tal individualismo depredador é na realidade débil, não robusto. Ao menor perigo à sua segurança, corre em direção ao estado para buscar refúgio e ajuda pela sua proteção... seu individualismo exacerbado é simplesmente uma das muitas atitudes típicas da classe dominante com vistas à extorsão política e a usurpação dos trabalhadores" [Emma Goldman, Ibid., p.397].
O anarquismo rechaça o individualismo abstrato do capitalismo, com suas ideas "absolutas" de liberdade do individuo violentado por outros. Esta teoria ignora o contexto social que é o ambiente onde a liberdade existe e cresce.
Uma sociedade baseada em "contratos individuais" geralmente resulta da desigualdade de poder entre os individuos contratantes e gera a necessidade de uma autoridade baseada em leis acima deles e na coerção organizada para forçar o cumprimento dos contratos entre eles. Se vê claramente esta consequencia no capitalismo e, mais notavel ainda, na teoria do "contrato social" da qual se desenvolveu o estado. Nesta teoria se assume que os individuos são "livres" quando estão isolados uns dos outros, estando, como dizem, originalmente em um "estado natural". Uma vez agrupados em sociedade, se supõe que criaram um "contrato" e um estado para administrá-lo. Contudo, além de ser uma fantasia sem nenhuma base na realidade (os seres humanos sempre foram animais sociais) esta "teoría" não é mais que uma justificação dos extensos poderes do estado sobre a sociedade; o que por sua vez justifica o sistema capitalista, que requer um estado forte. Tambem copia os resultados das relações econômicas capitalistas sobre as que se constrói esta teoria. Dentro do capitalismo, os individuos se contratam "livremente", mas na prática o patrão manda sobre o trabalhador enquanto dura o contrato. (Ver Seções A.2.14 e B.4para mais detalhes)
Na prática, o individualismo e o coletivismo levam à negação da liberdade individual, à autonomia e à dinâmica de grupos. Ademais, um supõe o outro, o coletivismo nos leva a uma forma particular de individualismo e o individualismo nos leva a uma forma particular de coletivismo.
O coletivismo, com sua supressão implícita do individuo, no final das contas acaba por 
empobrecendo à comunidade, uma vez que os grupos apenas tem vida atraves dos indivíduos que os formam. O individualismo, com sua supressão explícita da comunidade (i.e. as pessoas com que alguem vive) no final das contas empobrece ao individuo pois os individuos não existem aparte da sociedade, passa a existir dentro dela. Alem de tudo o individualismo acaba por restringir a uns "poucos eleitos" as intuições e habilidades dos individuos que formam o resto da sociedade, [agindo] desta maneira [se constituem] numa fonte de auto-negação. Esta é o erro (e a contradição) maior do individualismo, "a impossibilidade do individuo chegar a alcançar um pleno desenvolvimento em condições de opressão das massas pelas "belas aristocracias". Seu desenvolvimento permaneceria desequilibrado" [Piotr Kropotkin, Revolutionary Pamphlets, p.293].
A verdadeira liberdade e comunidade existem em alguma outra parte.

PORQUE O SISTEMA VOLUNTARIO NÃO É SUFICIENTE?

O sistema voluntario (voluntarismo) significa que a associação deveria ser voluntaria para maximizar a liberdade. Os anarquistas são, obviamente, voluntaristas, ao crerem que apenas na livre associação, criada por livres acordos, os individuos podem se desenvolver, crescer e expressar sua liberdade. Ë evidente, sem dúvida, que sob o capitalismo o voluntarismo não basta para maximizar a liberdade. O sistema voluntario supõe a promessa (i.e. a liberdade de entrar em contratos) e a promessa supõe a capacidade indivudual de juízo independente e deliberação racional. Também, ela 
pressupõe que possa valorizar e auterar suas ações e relações. Sob o capitalismo os contratos contradizen estas consequencias de voluntarismo, já que, mesmo técnicamente "voluntarios" (vimos naSeção B.4 que não é realmente assim) os contratos capitalistas resultam n negação da liberdade. É assim porque a relação social salario-trabalho supõe a promessa de obedecer em troca de pagamento. Todavia, como assinala Carole Patemen em The Problem of Political Obligation 
"prometer obediencia é afirmar que, em certas areas, a pessoa que faz a promessa já não tem a liberdade de exercer suas capacidades e de decidir suas proprias ações, e deixa de ser um (uma) igual para ser um (uma) subordinado (a)." [p.19].
Efetivamente, sob o capitalismo serás livre desde que escolhas a quem vais obedecer! A liberdade, contudo, deve significar mais que o direito de mudar de chefe. A servidão voluntária continua sendo servidão. Portanto os anarquistas realçam a necessidade da democracia direta nas associações voluntarias para assim assegurar que o conceito de "liberdade" nào é uma farsa e uma justificação para a dominação, como ocorre sob o capitalismo.
Toda relação social baseada no individualismo abstrato estará provavelmente baseada na força, no poder, na autoridade, e não na liberdade. Portanto isto não configura uma definição de liberdade na qual os individuos exercem suas capacidades e decidem suas proprias ações. Consequentemente, o voluntarismo não é suficiente para criar uma sociedade que eleve ao máximo a liberdade.
Certamente, poder-se-ia objetar que os anarquistas valorizam certas formas de relação social mais que outras e que um verdadeiro libertario deve permitir ao povo a liberdade de escolher suas proprias relações sociais. Contestando à segunda objeção primeiro, em uma sociedade baseada na propriedade privada (e no estadismo) os proprietarios tem mais poder, o qual podem usar para perpetuar sua autoridade. Por quê deveríamos evitar a servidão ou tolerar aqueles que desejam reprimir a liberdade dos outros? A "liberdade" de mandar é a liberdade de escravizar, e é de fato uma negação da liberdade.
Com respeito à primeira objeção, os anarquistas nos declaramos culpaveis. Teríamos prejuízo reduzindo seres humanos à condição de robôs. Teríamos prejuízo sacrificando a dignidade e a liberdade humana. Teríamos prejuízo, evidentemente, sacrificando a humanidade e a liberdade.
A Seção A.2.11 explica por quê a democracia direta é o reflexo social necessario do voluntarismo (i.e. do livre acordo). A Seção B.4discute por quê o capitalismo não pode basear-se em uma igualdade de poder negociativo entre os proprietarios e os que não o são.

E QUANTO À NATUREZA HUMANA?

Os anarquistas, longe de ignorar a "natureza humana", tem a única teoría política que pensa e reflete profundamente sobre este conceito. Muitas vezes, "a natureza humana" é lançada cini se fisse a última linha defensiva nos argumentos contra o anarquismo, supondo que não admite contestação. Todavia, não é assim.
Em primeiro lugar, a natureza humana é algo muito complicado. Se por natureza humana se quer dizer "o que fazem os humanos" é obvio que a natureza humana é contraditoria: amor, ódio, compaixão e crueldade, paz e violencia, etc. tem sido expressões das pessoas e todas são produto da "natureza humana". Portanto aquilo que se considera natureza humana muda a medida que mudam as circunstancias sociais. Por exemplo, a escravidão foi considerada parte da "natureza humana" e "normal" durante milhares de anos, e a guerra só se converteu em parte da natureza 
humana com o desenvolvimento dos estados. Portanto, o meio ambiente joga um papel importante na definição do que constitui a "natureza humana".
Isto não quer dizer que os seres humanos sejan infinitamente plásticos, cada individuo uma tábua plana (uma página em branco) ao nascer, esperando ser moldado pela "sociedade" (o qual na prática significa por aqueles que a gerem). Não queremos entrar em um debate sobre quais características humanas são ou não são "inatas". A única coisa que podemos dizer é que os seres humanos têm uma habilidade inata para pensar e aprender, o que julgamos evidente; e que os humanos são criaturas sociais, que necessitam da companhia dos demais para sentir-se completos e 
para prosperar.
Estes dois traços, segundo cremos, sugerem a viabilidade da sociedade anarquista. A habilidade inata para pensar por si mesmo automaticamente torna ilegítimas todas as formas de hierarquia, e nossa necessidade de relações sociais supõe que podemos nos organizar sem estado. O profundo descontentamento e alienação que afligem à sociedade moderna revela que a centralização e o autoritarismo do sistema capitalista e do estado negam necessidades inatas dentro de nós.
De fato, como foi dito anteriormente, durante a maior parte de sua existencia, a raça humana viveu em comunidades anárquicas, com pouca ou nenhuma hierarquia. Que a sociedade moderna qualifique essas pessoas de "selvágens" ou "primitivos" é pura arrogancia. Quem pode afirmar que o anarquismo vai contra a natureza humana? Os anarquistas acumularam provas suficientes que sugerem que não é assim.
No que diz respeito à acusação de que os anarquistas pedem demasiado à "natureza humana", são muitas vezes os não anarquistas os que fazem as maiores exigencias a ela. Posto que "enquanto nossos oponentes parecem admitir que há uma espécie de sal da terra: os governantes, os patrões, os líderes, os quais, afortunadamente, impedem que esses homens maus: os governados, os explorados, os dirigidos, se tornem muito piores do que são..., há uma diferença, uma muito importante. Nós reconhecemos as inperfeições da natureza humana, mas não excetuamos aos que mandam. Eles se excetuam, ainda que às vezes inconscientemente." [Piotr Kropotkin, Act for Yourself p. 83] Se a natureza humana é tão má, então dar a alguns o poder sobre outros e esperar que isto nos leve à liberdade e à justiça é uma utopia inútil.
Hoje, contudo, com o auge da "sociobiologia" alguns afirmam (com muito poucas provas reais) que o capitalismo é um produto de nossa "natureza", à qual é determinada pelos gens. Estas declarações foram tomadas de assalto pelas autoridades. Considerando a escassez de provas, seu apoio a esta "nova" doutrina tem que ser necessariamente o resultado de sua utilidade pasra aqueles que estão no 
poder: i.e. o fato de que é útil ter uma base "objetiva" e "científica" que justifique esse poder. Igualmente ao Darwinismo social que a precedeu, a sociobiologia procede primeiro projetando sobre a natureza as ideias dominantes da sociedade atual (muitas vezes inconscientemente, assim os cientistas consideram erroneamente as idéias em questão como "normais" e "naturais"). Depois as teorias sobre a natureza assim produzidas se transferem retroativamente à sociedade e à história, usando-as para "provar" que os principios do capitalismo (a hierarquia, a autoridade, a competencia, etc.) são leis eternas, que são depois usadas para justificar o statuos quo! Assombrosamente, há muita gente, supostamente inteligente, que levamjerarquía, la autoridad, la competencia, etc.) son leyes eternas, que son después usadas para justificar el status quo!. Asombrosamente, hay mucha gente, supuestamente inteligente, que leva este conto-do-vigário a sério.
Este tipo de apologia passa a ser tida como natural, já que toda classe dominante reivindica seu direito de governar baseado na "natureza humana" e portanto apoia doutrinas que definem a natureza humana de maneira que pareçam justificar o poder da elite, sejam elas a sociobiologia, o direito divino, o pecado original, etc. Obviamente, tais doutrinas sempre foram falsas... até hoje, quando evidenciou-se que nossa sociedade atual está verdadeiramente moldada à "natureza humana" o que foi provado cientificamente pelo nosso atual sacerdocio científico!
A arrogancia desta afirmação é verdadeiramente surpreendente. A historia não se detem. Daquí a mil anos, a sociedade será completamente diferente do que é agora, mais diferente do que se possa imaginar. Nenhum governo existente hoje em dia existirá mais, e o sistema econômico atual tampouco existirá. A única coisa que permanecerá igual é que pessoas ainda dirão que sua nova sociedade é o "verdadeiro sistema" que se molda completamente à natureza humana, mesmo que os 
sistemas passados não o tenham feito.
Claro, não passa pela mente dos que apoiam o capitalismo que povos de diferentes culturas tiraram conclusões diferentes dos mesmos fatos, conclusões que podem ser mais válidas. Nem ocorre aos apologistas do capitalismo que as teorias dos cientistas "objetivos" possam estar contaminadas pelo contexto da sociedade dominante em que vivem. Contudo, não surpreende aos anarquistas que os cientistas trabalhando na Russia tzarista desenvolveram uma teoria da evolução baseada na cooperação das espécies, muito diferente da de seus colegas da Inglaterra capitalista, que desenvolveram uma teoria baseada na luta competitiva dentro e entre as espécies. Que a segunda teoria refletisse as teorias políticas e econômicas dominantes na sociedade Britânica (notavelmente o individualismo competitivo) é pura coincidencia, certamente. "El Apoyo Mutuo" de Kropotkin foi escrito em resposta aos evidentes erros que o Darwinismo Social inglês projetava sobre a natureza e a vida humana.

http://cirandas.net/anarquismo/faq-anarquista/introducao/o-que-pretende-o-anarquismo

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