terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O que pretende o anarquismo? (3)

OS ANARQUISTAS ESTÃO DE ACORDO COM A ORGANIZAÇÃO?

Sim. Sem a associação, uma vida verdadeiramente humana é impossível. A liberdade não pode existir sem sociedade nem organização. Como indica George Barret em Objeções ao Anarquismo:
    "para alcançar o sentido pleno da vida devemos cooperar, e para cooperar temos que chegar a acordos com nossos semelhantes. Supor que tais acordos significam limitações à liberdade é na verdade um absurdo; ao contrario, são um exercicio de nossa liberdade.
    "Se vamos inventar um dogma sustentando que chegar a acordos é prejudicar a liberdade, então a liberdade imediatamente se transforma em tirania, posto que proibe aos homens os mais ordinarios prazeres cotidianos. Por exemplo, eu não posso passear com um amigo pois vai contra o principio da Liberdade se concordamos estar em um certo lugar a uma certa hora para uma reunião. Não posso nem sequer extender minha influencia alem de mim mesmo, porque para fazê-lo tenho que cooperar com alguem mais, e a cooperação leva consigo um acordo, e isso vai contra a liberdade. Se verá de imediato que este argumento é absurdo. Eu não limito minha liberdade, simplesmente a pratico, quando entro em acordo com um amigo para dar um passeio"
Quanto à organização, os anarquistas pensam que "longe de criar autoridade, é a única cura para ela e o único meio pelo qual cada um de nós se acostumará a tomar parte ativa e consiente no trabalho coletivo, e cessará de ser um instrumento passivo nas mãos dos dirigentes" [Errico Malatesta, Vida e Ideias].
O fato de que os anarquistas serem favoráveis à organização pode parecer a principio estranho, mas isso se deve a que vivemos em uma sociedade na qual virtualmente todas as formas de organização serem autoritarias, fazendo-as parecer como as únicas formas possiveis. O que quase nunca se reconhece é que este modo de organização tem sido condicionado historicamente, surgido de uma classe particular de sociedade -- cujos motivos principais são a dominação e a exploração. Segundo os arqueólogos e antropólogos, este tipo de sociedade existe apenas há 5.000 anos, tendo surgido com os primeiros estados primitivos baseados na conquista e na escravidão, onde o trabalho dos escravos criava um excedente que sustentava a classe dominante.
Anteriormente, por centenas de milhares de anos, as sociedades humanas e proto-humanas eram o que Murray Boochkin chamou"orgânicas", ou seja, baseadas em formas cooperativas de atividade econômica involucrando o apoio mutuo, o livre acesso aos recursos de produção e o compartilhamento dos frutos do trabalho comunal de acordo com as necessidades de cada um. Embora tais sociedades provavelmente tivessem categorias baseadas na idade, não haviam hierarquias no sentido de relações de dominio-subordinação institucionalizadas, impostas por sansões coercitivas resultantes da estratificação de classes e provocando a exploração econômica de uma classe por outra [ver Murray Bookchin,  Ecologia da Liberdade].
Há que se notar, todavia, que os anarquistas não anseiam por um retorna "à idade da pedra". Simplemente notamos que posto que o modo de organização hierárquico é um desenvolvimento relativamente recente no curso da evolução humana, não há razão para supor que de alguma forma está "destinado" a ser permanente. Não cremos que os seres humanos estejam genéticamente "programados" para uma conduta autoritaria, competitiva e agressiva, por não haver provas convincentes que apoiem esta premissa. Ao contrario, tal conduta está condicionada socialmente, ou aprendida, e como tal, pode ser desaprendida [ver Ashley Montagu, A Natureza da Agressividade Humana]. Não somos nem fatalistas nem deterministas genéticos, pois cremos no livre arbitrio, que significa que as pessoas podem mudar a maneira de fazera as coisas, incluindo a forma como organizam a sociedade.
Não cabe duvida que a sociedade necessita ser organizada melhor, posto que no presente a maior parte da riqueza -- que é produzida pela maioria -- e o poder estão distribuidos entre uma pequena minoria elitista no topo da pirâmide social, causando privações e sofrimentos aos demais, particularmente aos que estão mais embaixo. Desta maneira, esta elite que controla os meios de coerção atraves de seu controle do estado (ver Seção B.2.4), pode assim submeter a maioria e ignorar seus sofrimentos -- um fenômeno que ocorre em menor escala em todas as hierarquias. Não é de estranhar, pois, que as pessoas nas estruturas autoritarias e centralizadas cheguem a odiar essas elites como uma negação de sua liberdade. Alexander Berkman disse:
    "a sociedade capitalista está tão mau organizada que todos seus membros sofrem: da mesma forma que quando tens uma dor em alguma parte, todo teu corpo dói e adoeces..., nenhum membro de uma organização ou sindicato pode ser impunemente discriminado, suprimido ou ignorado. Fazer isso seria como ignorar uma dor de dente; te sentirias completamente enfermo" [Alexander Berkman. ABC Do Comunismo Anárquico, p. 53].
Dessa forma, isto é precisamente o que ocorre na sociedade capitalista, o que resulta em estar realmente "completamente enferma".
Por estas razões, os anarquistas rechaçam as formas autoritarias de organização e em seu lugar apoiam associações baseadas em acordos voluntarios. O acordo voluntario é importante porque, segundo Berkman, "apenas quando cada um é uma unidade livre e independente, cooperando com os demais de boa vontade devido a seus interesses mutuos, poderá o mundo funcionar com êxito e chegar a ser poderoso" [Op. Cit., p. 53]. Na esfera "política" isto quer dizer democracia direta e confedeação, que são a expressão e o meio ambiente da liberdade. A democracia direta (ou participatoria) é essencial posto que a liberdade e a igualdade implicam na necessidade de foros onde as pessoas possam discutir e debater entre iguais e que permitam o livre exercicio do que Murray Bookchin chama "o papel criativo da dissenção".
As ideias anarquistas sobre a organização libertária e a necessidade da democracia direta e de uma confederação serão discutidas a fundo nas seções A.2.9 e A.2.10.

OS ANARQUISTAS SÃO A FAVOR DA LIBERDADE "ABSOLUTA"?

Não. Os anarquistas não creen que cada qual possa fazer "o que vier na telha", já que certas ocasiões invariavelmente trazem consigo a negação da liberdade dos outros.
Por exemplo, os anarquistas não apoiam a "liberdade" de violar, explorar, ou obrigar aos demais. Tampouco toleramos a autoridade. Ao contrario, posto que a autoridade é um atentado contra a liberdade, a igualdade e a solicariedade, (sem mencionar a dignidade humana), os anarquistas reconhecem a necessidade de recusá-la e destruí-la.
O exercicio da autoridade não é liberdade. Ninguem tem o "direito" de mandar nos demais. Conforme assinala Malatesta, o anarquismo apoia "a liberdade para todos... com o único limite da igual liberdade dos demais; o que não significa ... que reconheçamos, nem pretendamos respeitar, a "liberdade" para explorar, oprimir, mandar, o que é opressão e certamente não é liberdade." [Errico Malatesta, Vida e Ideias, p. 53].
Na sociedade capitalista, a resistencia a todas as formas de autoridade hierárquica é a marca da pessoa livre -- tanto no privado (o patrão) como no público (o Estado). Como disse Henry David Thoreau eem seu ensaio Desobediencia Civil (1847):
    "A desobediencia é a verdadeira base da liberdade. Os obedientes são necessariamente escravos."

POR QUE OS ANARQUISTAS SÃO A FAVOR DA LIBERDADE?

Como dizíamos em A.2, os anarquistas se dedicam à igualdade social porque apenas neste contexto pode florescer a liberdade individual. Embora muita besteira tenha sido escrita sobre "igualdade", e muito do que se crê sobre ela é realmente estranho. Antes de discutir o que os anarquistas querem dizer por igualdade, devemos apontar o que não queremos dizer.
Os anarquistas não creem na "igualdade de dotação", que não somente não existe, mas que seria muito indesejavel se se pudesse conseguir. Cada um é único. As diferenças humanas determinadas biologicamente não só existem, como são "motivo de regozijo, não de medo nem de pesar". Por que? Porque "a vida entre clones não valeria a pena, posto que a pessoa só sentiria alegria ao ver que outros tem habilidades diferentes das suas" [Noam Chomsky Red and Black Revolution, No.2].
O fato de alguns sugerirem seriamente que os anarquistas ao dizerem "igualdade" querem dizer que todo mundo deve ser identico é um triste reflexo do estado da cultura intelectual de hoje e da corrupção das palavras -- corrupção que se usa para desviar a atenção para longe do sistema injusto e autoritario e direcionar as pessoas para discussões sobre biologia.
Tampouco são os anarquistas a favoraveis à chamada "igualdade de resultados". Não temos desejo de viver em uma sociedade onde todo mundo recebe os mesmos bens, vive no mesmo tipo de casa, veste o mesmo uniforme, etc. Parte do motivo da rebelião anarquista contra o capitalismo e o estatismo é a padronização de tão grande parte da vida (ver George Reitzer The McDonaldisation Of Society sobre porque o capitalismo conduz à padronização e à conformidade].
A "igualdade de resultados" só pode ser estabelecida e mantida à força, o que, em todo caso NÃO seria igualdade, posto que alguns teriam mais poder que outros! "Igualdade de resultados" é particularmente detestada pelos anarquistas, já que reconhecemos que cada individuo tem diferentes necessidades, habilidades, desejos e interesses. Obrigar todos a consumir o mesmo seria uma tiranía. É obvio pois, que se uma pessoa necessita tratamento médico e outra não, as duas não receberiam "o mesmo" cuidado médico. O mesmo se passa com outras necessidades humanas.
Para os anarquistas, estes "conceitos" de "igualdade" não tem sentido. A igualdade, na teoria anarquista, não significa negar a diversidade ou unicidade individual. Como observou Bakunin: "uma vez tendo a igualdade triunfado e for bem estabelecida, será que não haverá mais nenhuma diferença em talentos e em graus de aplicação dos diferentes individuos? Haverão diferenças, não tantas como existem hoje, quiçá, mas sempre haverão diferenças. Disso não cabe dúvida. Isto é uma verdade proverbial que
provavelmente nunca deixará de ser verdade -- que nenhuma árvore jamais produza
folhas exatamente idênticas. Quanto mais sobre os homens, sendo os homens criaturas muito mais complicadas que as folhas . Mas tal diversidade, longe de constituir uma aflição é . . . uma das vantagens da humanidade. Graças a ela, a raça humana é um todo coletivo donde cada ser humano complementa o resto e necessita dela; pois esta variação infinita nos seres humanos é a verdadeira causa e a base principal de sua solidariedade -- um argumento muito importante a favor da igualdade" [Integral Education].
Para os anarquistas, igualdade quer dizer igualdade social, ou, usando um termo de Murray Bookchin, a "igualdade de desiguais". Isto significa que as relações sociais hierárquicas são abolidas em favor daqueles que fomentam a participação e estão baseadas no princípio de "uma pessoa, um voto". Portanto, a igualdade social no trabalho, por exemplo, quer dizer que cada um tem a mesma voz nas decisões acerca de como se desenvolve e se encaminha o trabalho. Os anarquistas creen firmemente na máxima "aquilo que afeta a todos é decidido por todos".
Isto não quer dizer, contudo, que a perícia seja ignorada e que todo mundo decida tudo. No tocante à perícia, diferentes pessoas tem diferentes interesses, talentos, habilidades, assim pois é óbvio que quiram estudar diferentes coisas e fazer diferentes tipos de trabalho. Tamben é óbvio que quando uma pessoa está enferma consulta com um médico -- um especialista -- que gestiona seu próprio trabalho sem ter que ser dirigido por um comitê. Sentimos ter que expor e esclarecer estas uestões,
pois cada vez mais gente se empenha a dizer disparates. É ponto pacífico que um hospital gerido de uma maneira socialmente igualitaria, não colocará seu pessoal não-médico para votar sobre como os doutores devem fazer uma operação!
De fato, a igualdade social e a liberdade individual são inseparaveis. Sem a autogestão coletiva das decisões que afetam a um grupo (igualdade) para complementar a autogestão individual das decisões que afetam o individuo (liberdade), uma sociedade livre é impossivel. Sem ambas, alguns teriam poder sobre outros, fazendo decisões por eles (i.e. governando-os), e dessa maneira alguns
seriam mais livres que outros.
A Seção D.3 ("Por quê os 'anarco-capitalistas' geralmetne dão pouco ou nenhum valor à "igualdade" e o que querem eles dizer com essa terminologia?") elabora as ideas anarquistas sobre a igualdade em mais detalhes.

POR QUE A SOLIDARIEDADE É IMPORTANTE PARA OS ANARQUISTAS?

A solidariedade, ou o apoio mútuo, é uma ideia chave do anarquismo. É o laço de união entre o individuo e a sociedade, o meio atraves do qual os individuos trabalham juntos para satisfazer seus interesses comuns de forma a apoiar e nutrir a liberdade e a igualdade. Para os anarquistas, o apoio mutuo é um traço fundamental da vida humana, uma fonte de força e felicidade e um requisito principal para uma plena existencia humana.
Erich Fromm, famoso psicólogo e humanista socialista, disse que "o desejo humano de praticar a união com os demais tem suas raizes nas condições específicas de existencia que caracteriza a especie humana e é um dos mais fortes motivos da contuta humana" [To Be or To Have, p. 107]
Portanto os anarquistas consideram o desejo de formar "vínculos" (usando o termo de Max Stirner) com outros como uma necessidade natural. Estas ligações, ou associações, dever ser baseadas na igualdade e na individualidade para que sejam totalmente satisfatorias para aqueles que as compõem -- i.e. devem ser organizadas de maneira anarquista, i.e., voluntarias, descentralizadas e não-hierárquicas.
A solidaridade -- a cooperação entre individuos -- é necessária para a vida e está longe de ser uma negação da liberdade. "Quê resultados maravilhosos tem obtido esta singular força da individualidade humana quando se fortalece com a cooperação com outros indivíduos", observa Emma Goldman. "A cooperação -- em contraposição às lutas intestinais e à dissenção -- tem funcionado a favor da sobrevivencia e da evolução das especies... Só o apoio mútuo e a cooperação voluntaria... podem criar as bases de uma vida individual e associativa livre" [Habla Emma La Roja, p. 95].
Solidaridade quer dizer associar-se juntos como iguais para satisfazer necessidades e interesses comuns. As formas de associação que não estão baseadas na solidariedade (aquelas baseadas na desigualdade) esmagarão a individualidade dos que estão sujeitos a elas. Como indica Ret Marut, a liberdade necessita da solidariedade, em reconhecimento dos interesses comuns:
"O mais nobre, puro e verdadeiro amor da humanidade é o amar-se a si mesmo: eu
quero ser livre!, eu quero ser feliz! eu quero desfrutar de todas as coisas belas do
mundo. Mas minha liberdade está assegurada somente quando os demais ao meu redor são livres. Eu só posso ser feliz quando as pessoas ao meu redor são felizes. Eu só posso estar alegre quando as pessoas que vejo e conheço vêem o mundo com os olhos da alegria, e só posso encher minha taça de pura felicidade quando estiver seguro em minhas convicções que os demais, tambem, podem encher seu copo da mesma forma que eu. E por essa razão, é por tratar-se de minha própria satisfação, de meu proprio eu, quando me sublevo contra todo perigo que ameaça minha liberdade e felicidade..." [Ret Marut (alias B. Traven), The Brickburner magazine]
Na prática, solidariedade quer dizer que reconheçemos, como o slogan do  Industrial Workers of the World, que "uma afronta a um é uma afronta a todos".
Sob uma sociedade hierárquica, a solidariedade é importante não apenas pela satisfação que nos dá, mas também porque é necessária para resistir aos que estão no poder. Estando unidos, aumentamos nossa força para conseguir o que queremos. Em larga escala, organizados em grupos, juntos poderemos começar a gerir nossos próprios assuntos coletivos e assim suprimir os patrões de uma vez por todas. "os vínculos ... multiplicarão os bens do individuo e assegurarão sua propriedade ameaçada" [Max Stirner El Unico Y Su Propiedad, p. 258]. Atuando com
solidaridade, podemos dessa forma substituir o sistema em vigor por um mais de nosso agrado. Há poder na "união".
A solidariedade é pois o meio pelo qual podemos obter e assegurar nossa propria liberdade. Concordamos trabajar juntos para não ter que trabalhar para outro. Concordando compartilhar com os demais aumentamos nossas opções para desfrutar mais, não menos. O apoio mútuo é em meu próprio interesse -- ou seja, eu me dei conta de que é vantajoso para mim chegar a acordos com os demais com base no respeito mutuo e na igualdade social; pois que se eu domino alguem, isto significa que as condições que permitem o dominio existem, assim pois muito provavelmente eu
tamém serei dominado algum dia.
Segundo a visão de Max Stirner, a solidariedade é o meio pelo qual asseguramos que nossa liberdade seja reforçada e defendida contra aqueles no poder que nos querem dominar: "Então tú mesmo não conta para nada?" ele pergunta. "Estas disposto a permitir que façam de ti o que bem entenderem? Defende-te e ninguem te tocará. Se há milhões de pessoas atraz de ti, então és uma potencia formidavel e ganharás sem dificuldade" [Ibid.].
Por conseguinte, a solidaridade é importante para os anarquistas porque é o meio pela qual a liberdade pode ser criada e defendida contra o poder. A solidariedade é força e um produto de nossa natureza de seres sociais. Não obstante, a solidariedade não deveria ser confundida com "rebanhismo" que implica em seguir um lider passivamente. Para que seja efetiva, a solidariedade tem que ser criada por gente livre, cooperando juntos como iguais. O "grande nós" não é solidariedade, mesmo que o desejo do "rebanho" seja um produto de nossa necessidade de união e solidariedade. É uma "solidariedade" pervertida pela sociedade hierarquizada, que condiciona as pessoas a obedecer a líderes cegamente.

http://cirandas.net/anarquismo/faq-anarquista/introducao/o-que-pretende-o-anarquismo

Nenhum comentário:

Postar um comentário